sexta-feira, 31 de agosto de 2007

REPRODUÇÃO

PASCAL BRUCKNER
“O que em geral torna tão chatos os tratados sobre a felicidade é que eles transmitem uma única e mesma mensagem: contentai-vos com vossa sorte, moderai vossos desejos, desejai o que tendes e, assim, tereis o que desejais; sabedoria tão resignada quanto insípida. Não há nada pior do que essas pessoas eternamente alegres, em todas as circunstâncias, que têm sempre uma expressão radiante no rosto. A felicidade não constitui apenas, com o mercado da espiritualidade, a maior indústria da nossa época, é também, e com muita exatidão, a nova ordem moral. Nada de estranho se a depressão se instala quando este hedonismo é maltratado, por pouco que seja, pelas realidades da vida.

(...) A ‘aposentadoria’ divina é uma boa e uma má notícia. É a chance para que a independência humana se desenvolva sem nenhuma tutela, mas é também o peso do cotidiano, que é preciso carregar com grande esforço e sem ajuda. Ao sublime medieval, sucede-se o trivial moderno, ao grande absoluto, o pequeno relativo. Terrível vertigem de um homem, subitamente alijado de seus entraves e que sofre mais por causa de um desencanto que de uma desorientação; ele se vê livre, mas se sente pigmeu. Com essa liberação nasce também a banalidade, isto é, a imanência total da humanidade abandonada a si própria.” O resultado é a emergência de uma transcendência “horizontal”, que se traduz por uma eterna busca do prazer. “Basta que eu não goze plenamente o que devo gozar para estragar minha vida. Isso tem duas conseqüências trágicas: a infelicidade começa no mesmo instante em que cessa o bem-estar. Como o encantamento depende apenas de nossa fruição, nós nos consideramos culpados de nossos infortúnios. (...)

O cotidiano compõe um nada agitado, ele nos esgota por suas contrariedades, nos desgosta por sua monotonia. Não me acontece nada, mas esse nada ainda é demais: eu me disperso em mil tarefas inúteis, em formalidades estéreis, em vãos falatórios que não fazem uma vida, mas bastam para me extenuar; isso é o que nós batizamos com o nome de estresse, essa corrosão contínua no interior da letargia que nos vai comendo aos bocadinhos, dia após dia. Para combater essa vacuidade, recorremos a mil expedientes, a qualquer coisa que nos forneça uma história: a onda do corpo, o hedonismo triunfante, o sensualismo militante, a meditação transcendental, dietas, o budismo e o dalai-lama, a rejeição ao sofrimento e ao medo da morte, o horóscopo, a meteorologia...”

domingo, 26 de agosto de 2007

UM DISCURSO


Em solenidades, particularmente de educadores, há um mau gosto generalizado por metáforas: slogans, frases feitas, jargões e respiros de heroísmos messiânicos. É uma espécie de mau-caratismo da profissão.

Ser professor é coisa difícil de definir. Educar é mais difícil, daí o gosto fácil e parnasiano pela metáfora, a que ilustra cartolinas em sala de professores no Dia dos Professores. Ou azulejos em varandas pedagógicas.

35 ou 40 crianças em solicitações simultâneas é brincadeira sinistra. Supondo que, na média, uma criança moderna tenha um dos pares de domínios familiares, vocês estarão lidando com 80 ansiedades e cobranças. Para o leite de suas próprias crianças, múltiplas sinistroses. Múltiplas turmas. É assim e muito mais. Não é coisa pequena, mas é fascinante. Como a guerra. Somos, no Brasil, uma espécie de Cruz Vermelha pedagógica permanente.

Por que ser educador?

Nos anos sessenta e setenta, era uma tarefa política contra o Estado. Matreiramente, o Estado abraça a Educação para oferecer um engenheiro (sem emprego) como chofer de táxi - ou de ônibus. A Educação não se aparta do resto. O educador é um modo formal de criar encrencas. Contra um Estado que, por não se aborrecer, dá um tiro no pé. A Educação não é uma panacéia. O educador ou é um humilde ou não é nada. Humildade como resignação e resistência frente ao crime do Estado; por isso também a confusão com o sacerdócio. Médicos são nossos parceiros como vítimas dessa miopia oportuna.

A despeito do Estado, seguimos. Como a Educação, no caldeirão em que estamos, não é nem pode ser espontânea, somos e muitos de nós seremos braços do Estado. Padecemos de um mal de Hamlet: sermos ou não sermos braços de políticas governamentais? Dormimos e acordaremos com um dilema que nos atravessará como espada pelo ventre. Sou guerreiro voluntarioso ou soldado raso, sob o grito federal, estadual ou municipal de um burocrata do ensino?

A graça de se formar e esquentar motores para o trabalho é ter pelo ventre uma espécie de gestação sobre a qual não temos controle. Uma espécie de fúria, de gana, de faca afiada. Um destino que, ao amadurecermos, nos dobrará sobre passados e presentes, e, nos virá trazendo mais luz sobre futuros mais mansos, mais plásticos e menos fatídicos. Jovens e irresponsavelmente lúcidos, indistintos na sala de aula. Que quaisquer deuses nos abençoem!