sexta-feira, 2 de setembro de 2016

ISTO E AQUILO LÁ

Penso numa fotografia de alguém que não conheço. Nela, não há movimento nem tempo, esse par inseparável. Se o tempo dá o contorno da figura, o movimento dá sua fisionomia. Então, a fotografia daquele desconhecido me informará muito pouco sobre ele, como os retratos de documentos. Eu, como qualquer observador, "ficciono" aquele par mencionado: o movimento e o tempo são construções minhas. A necessidade de dar vida a quem se apresenta como morto no papel. Assim, a figura sairá andando por aí, numa narrativa inconclusa, a menos que ela surja da imagem numa página policial de um periódico e, empiricamente, esteja de fato morta. Será? Ela não teve um passado, a narrativa do que foi?

A imaginação faz de um observador comum, por instantes, um romancista amador. O ser humano é, naturalmente, um criador de criaturas, a começar de si, depois vêm os outros. Por isso, a coisa não pode dar certo, sempre, e nossa vida não passa de uma aproximação, mais ou menos rente, imperfeita. As identidades não se confundem. É seu encanto e seu fracasso.



terça-feira, 30 de agosto de 2016


SALTITANTE

Por hábito circular,
Oscila entre o rigoroso formal
Ou vice-versa e o moleque insano.
Quando se cansa da primeira máscara,
Salta para a segunda,
Que logo vai assustá-lo.
Retorna então ao cobertor da primeira.
A verdade é que se cansa de tudo:
De comer, de beber água ou outra coisa,
De dormir, de estar acordado, das pessoas,
Do sol, da sombra, até de ler e escrever.
Mas nunca de viver, de chupar caju, comer abacaxi
E melancia. Ele insiste.
Pensa que o sossego eterno pode até ser atraente.
Mas e se cansar-se de estar morto?
Cairá numa enrascada: o nada não negocia,
Por melhor que seja a lábia.
Por isso insiste.
Ele está quase certo, como todos nós,
Pobres mortais insanáveis.

O QUINTAL DA INFÂNCIA 


De cima para baixo ou da rua para os fundos, vejo uma mirrada pereira e uma macieira. Mais descendo, à esquerda, um coqueiro-mirim, carregado. À direita, um rego, um sapo e uma laranjeira que frutifica quando quer. No centro, uma tangerineira. Ao lado, uma mangueira, onde está minha casa arbórea e onde me escondo dos beliscões maternos. Mais: outra vez, no centro, mais abaixo, um pé de limão cravo. À direita, duas goiabeiras adequadas para os doces que faço com minha mãe. Ao lado, um galinheiro, abacaxis, outras laranjeiras, um abacateiro, um pé de feijão andu, parreira (muitas abelhas e vespas), taiobas, um mandiocal, amoreira, canas caianas, mais goiabeira e mais abacateiro; um limoeiro, mais três laranjeiras, de espécies distintas, um pinheiro que chora nas noites de muito vento e uma limeira. Por fim, ao lado do pinheiro, uma edícula (chamávamos puxado) onde ficavam a lavanderia, um poço e um fogão a lenha; cozinhávamos aí, antes do gás entregue nas casas.


Eu? Bem quietinho, pulo a janela de meu quarto na madrugada, deito no chão do quintal e fico a apreciar as estrelas, a Lua às vezes, vaga-lumes, grilos, formigas, aranhas e bichos vários. Sou feliz em pensar no escuro. Pelo menos era. Meu quintal tornou-se um patrimônio pessoal inalienável, um tesouro de felicidade para os anos que me restam.




I

Há exatamente neste ponto
Um há.
Mais que um,
Um i.
Talvez um ai.
Dor talvez.
Quando branduras houver,
Haverá um se
Se há de vir.
Durmo em mim
Como um i em si.
Tudo há de ser
Um mar e ar,
Um comigo de si,
Um aí, o sempre em,
Um ninguém besta.
Que ainda assim ama.

ACOLÁ

Aqui,
Tudo em ordem:
As baratas todas mortas.
Os sapatos alinhados,
As águas afogadas,
Toalhas secas,
Os frios, frios;
Os quentes, quentes.
Só eu, apenas só. Todos nós.
Abro as janelas.
O céu e as nuvens disseram-me que...
Não me disseram nada.
Aqui estou eu. Todos nós.
Estão ali os pós dos papéis em branco.