sexta-feira, 26 de setembro de 2014


O PÁSSARO E O POLEIRO

 

L. Freud
 Num caminhando a galope para uma espécie de neofascismo (ver a obsessão pelos clichês saúde, eufemismo para instrumentalização do corpo, qualidade de vida e autoestima), é sempre bom ficar atento e não esquecer a boa e velha insubmissão.

   Prefiro o desvairado ao sóbrio (o normal, o certinho, o virtuoso). O primeiro é variado, múltiplo, imprevisível, imaginativo, fantasioso e criativo. O sóbrio é normativo, repetitivo, conformado e acomodado. Vê-se dominante (organiza exércitos) quando, na verdade, é mentalmente dominado. O desvairado é inquieto, transformador. O sóbrio é fixador, ancilosado e rebalsado. Julga-se superior sendo, de fato, o inferiorizado na mediocridade, em ordem-unida. O sóbrio orienta para o seu bem; o desvairado desorienta para qualquer coisa, qualquer lugar. O sóbrio sofre de nanismo cognitivo, tem certezas, adoece com a polissemia; o desvairado se agiganta no vasto oceano da dúvida e das incertezas.

 O sóbrio é obediente e aprecia fazer-se obedecer - o servo na rua, o tirano em casa. O desvairado se rebela e busca desordem para abrir-se ao novo, ao inesperado. O sóbrio é virtude, o desvairado é pecado; o sóbrio é grosso, porque rígido; o desvairado, fidalgo, porque bailarino. Em nosso mundo insuportável, o desvairado é julgado, sentenciado e executado; ora direis sacrificado. Assim, a ordem se restabelece. E vemos o que vemos, temos o que temos. Basta pôr um único pé porta afora.

 É evidente que faço aqui uma simplificação. Afinal, toda experiência que se fixa em palavras é reduzida, rebaixada e controlada pela razão sintática. Além disso e fora disso é o caos do inefável e impalpável que faz e habita os confins do cérebro imaterial. Não há saída para o ordinário da existência cotidiana. O sóbrio é linha reta; o desvairado é desvio. O desvairado é um homem só em seu tugúrio; o sóbrio, um animal de rebanho. O sóbrio é prosa; o desvairado, poesia.

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