sexta-feira, 2 de maio de 2008

Ajuste

O amor é simples: é o oco que se desengole.
Eu, você, nós dois, já temos um passado
Num presente que mal se desembrulha.

O amor é simples: é um oco que se satisfaz.
A abóbora abobada que se abre entre nós
Como um livro.

Simples assim, como simples é a cegueira
do vão desejo.
A frase se desfazendo num simples fazer.
O que não faz já tendo sido feito.

A.R.Falcão - nov. de 2005


Maré Minguante

A busca por um
Verbo que eu, puxando,
Me leve a águas
Menos rasas, no escuro
Mais profundo do
Desamparo humano;
E da solitude mais vadia
E mais inútil em que nos
Atiramos por inteiro e rasgados,
Nos interstícios mais vastos
Dos céus e mares que
Mutuamente se espelham,
Na inveja da incompletude,
Do amor que não se quer fazer
- Lua vazante -
E em vão se procura;
E que, antes de minguar, jaz aqui.

antônio rebouças falcão
abril 2005



Amanhã


A matéria é um limite generoso.

Teus engenhos são,
Perto da fisionomia,
Esta tua cara,
Um blefe.

Tu, tua cara,
São sublimes.
Quase um beijo
Esta tua porca cara encantaria.

Tu e você dançam
Nesta noite velha de escuro e
Silêncio. Não mais adormeces.
Tu deitas.
Você, como deus,
Lamenta e contempla.

Com a boca suja, suas unhas
Coçam um peito nervoso
Pelo vento difuso que lhe passeia
As diminutas dobraduras
Das ventas e veias. Tua
Única matéria que dorme.

És muito fácil.
Um espirro, teu quase.

antônio rebouças falcão


Enquanto os homens

Não nadam.
A água passeia sob as nuvens,
Num mundo em que me encontro.
É da cor do sal.
Mas não sei escrever. Lá fora,
Entre mim e ele, borboletas andam de avião.
Gostaria de ser melhor. Não sou.
Mato lagartas em vão.
Ali, meus botões não respondem.
Trafego por desertos. Guardo silêncios nos bolsos.
Então, senhores, escrevo.
Para não olhar o mar - que tanto me incomoda.
Ali, estão as palavras
Quando, em meu humilde dedo,
Toco finos e fundos grãos de areia.
A. R. Falcão - 2001


Então

no lençol das águas,
passeia um dedo
como se quisesse apenas
um desenho - dos mais simples de se ver,
invejoso das artes pétreas que
desarranjam a preguiça dos lagos
adormecidos na própria soberba.

Como quem, não sabendo
dos estranhos desígnios
do leito, o insidioso colo dos afogados,
bebesse então, nas
mais estranhas tetas,
a água que nos molha,
já nos primeiros desvarios dos sabiás.

Ou o leite desperdiçado
por um dos seios órfãos
que nos nega a sede das manhãs.
De todas elas.

antônio rebouças falcão
outubro de 2004