PERFIL
REVISITADO - dez. 15
ao
Pedro, meu filho
Contente às vezes, deprimido com o
que vejo e fico sabendo em outras; indiferente em relação àquilo sobre que a
maioria se debruça; perseguidor, dentre minhas aptidões e percepções, de
justiça no miúdo cotidiano - para o grande, sou pequeno; cultivador da
liberdade plena de espírito; cooperativo quando há oportunidade e solicitação;
contente às vezes, deprimido em outras; solitário por vocação; delicado e cortês
no trato; ácido ou agressivo se de álcool abuso; intenso no que sinto;
observador atento e silencioso, pensativo permanente.
Avesso a hordas e manadas de
quaisquer espécies, mas amo as vaquinhas no pasto; não compareço a eventos que
impliquem ajuntamentos humanos; refratário a modismos vários, panelas, tribos e
patotas - o que me pôs longe de estabelecimentos etílicos ruidosos, de
comidinhas e encontros regulares (Vila Madalena? Argh!); antissocial quando se
trata de adesões e ativismos, não abraço causas, desconfio, duvido; nenhuma fé
ou crença religiosa, mas curioso sobre religiões como expressão da cultura
humana; leitor compulsivo (apaixonado por livros), escritor e desenhista amador
- a fotografia e a culinária ficaram no passado, imaginoso em permanente fantasia
; interessadíssimo em arte. Vivo muito só e gosto.
Atividade física é caminhar; quando
possível, nadar - academias de ginástica são dos lugares mais sinistros;
irascível com a força bruta, crítico permanente da instrumentalização do corpo
- o trabalho assalariado já é suficientemente embrutecedor. Feliz? Não.
Felicidade? O que é isso senão uma bobagem ignorante e egoísta, sem base no
correr da vida, uma mistificação, o véu ilusório da ignorância - olhe em torno,
pense no outro. Saia da ilha da fantasia. De outro modo, tenha vergonha na
cara.
Dificuldade em desvencilhar-me de
hábitos arraigados; organizadíssimo para, em seguida, desarrumar-me e a tudo em
volta; depois, o penoso retorno à ordem, numa circularidade indesejada,
aparentemente interminável - Sísifo. Se me distrair, estou colecionando
bobagens. Intolerância crescente com o desprezo pela civilidade urbana nas
metrópoles - a deseducação das pessoas nos espaços públicos, daí o recolhimento
também crescente - no Brasil, a rua tornou-se o inferno; há muito, denuncio a barbárie
avassaladora. Indignação com a política tal como a praticada aqui e acolá, de
ponta a ponta - nenhum vínculo ou pertencimento partidário, nunca - o velho
"pensar com a própria cabeça".
Contente às vezes, deprimido em outras.
Tido como ranzinza, entretanto, bem humorado e brincalhão, mas... Persigo a
conversa elegante, educada, nem sempre ao alcance nos dias que correm - falar
pouco, baixo e tratar com carinho a língua. Fidalguia ao relacionar-se,
urbanidade em todas as situações possíveis. Coisa muito difícil no patoá da
manada (vocabulário de 500 palavras no máximo; não é, mano?) - paisinho de apedeutas ágrafos.
Quase ninguém mais sabe ou quer ouvir e
desaprendem a falar, gritam e vociferam palavrões a esmo. Pelas bocas, jorra esgoto. Sentenciam sem julgamento ou julgam de modo
sumário e burro. A vida dos outros me interessa muito pouco, quase nada, a não
ser aquela dos mais íntimos, por isso o fuxico me parece, dos atos verbais
corriqueiros, coisa repugnante.
Entedio-me com facilidade (um
sofrimento). Blindado para melindres, ouvidor tranquilo de críticas (que, em
geral, para mim, não trazem novidades - não escondo defeitos, os carrego),
indiferente a elogios; sem ódio em geladeira, severo com meus próprios escorregões
e um olhar agudo, involuntário para defeitos, mazelas, incorreções e ruindades
alheias. Para os objetos feitos também. Um sofrimento. Não sei se meu desprezo
pelo ser humano me protege ou me aliena, mas ele é um fato; prefiro os animais
em boa hora. Quero entender e conhecer, fracasso. Vivo cansado de mim.
Como bem, durmo pouco e cultivo uma
boa preguiça. Cuido de mim, sem ajuda doméstica de nenhuma espécie. Até agora -
65 anos. Odeio telefones e maquinas em geral. Amo o silêncio (bem inexistente),
o sossego e deixem-me em meu canto; à maneira de Caymmi :"podem ir, que
não vou". Mas não me furto a um convite simpático para um lugar e
companhia interessantes (bens raríssimos).
Gosto, à beira do encantamento, do
mar aberto, sem banhistas certamente. Ele dá a exata medida de minha
insignificância e ganho a sensata noção de meus limites - a coisa mais parecida
ao rezar é observá-lo sozinho no início da manhã, quando o tenho por perto. O
muito grande que não me humilha ao diminuir e serve para aplacar as tolas
angústias constituintes do homem. Tal como o deserto, mas este não conheço nem
conhecerei. A religião de nada me serve, a beleza de um passarinho sim. Se quer
saber como me relaciono com a morte, faço uso de uma citação: “A morte é um
momento, e da minha vida não há de roubar mais do que isso: o seu momento”.*
O que não sei me afaga, o que julgo
saber me inquieta. Nesse quesito como no anterior, sou um homem apaziguado.
Alegre às vezes, melancólico quase sempre.
*Da mãe de Francisco Daut (colunista da Folha de S.
Paulo) , cujo nome desconheço.
Antônio
Rebouças Falcão