segunda-feira, 4 de maio de 2015


IDOS

Seis besouros no bolso,
Um canivete,
Um bilboquê no ombro
E está condensada a infância
Daquele homem morto ali.

Um espelho pequeno,
Um batom, uma pinça
E uma escova de cabelos na bolsinha cor-de-rosa.
Está compactada a possível  sedução
Daquela mulher estirada ali.

Os dois nunca trocaram palavras,
Mas permutaram olhares,
Em promessa vã,
Naquela parada de ônibus,
Naquela tarde vazia de domingo.

Ninguém esperava o brusco fim de tudo,
Esperava o traslado, esperava o afago,
O conforto da sopa quente e o amor do nunca.
O atropelamento faz, da morte,
O desvelo sinistro do acaso permanente.



TURISTAS       

No Cazaquistão,
Numa moradia improvável,
A tinta se soltava aos pedaços
Naquele batente da porta
(Não existem portas)
Que nunca se abre
Em dias pares.

Nos momentos ímpares,
Veem-se, pelo vão,
Pernas, muletas, trapos
E o odor fétido de dias difíceis.

Os invasores sabem que, ali,
O móvel é imóvel,
O claro, escuro.
O vidente, uma podre digestão
E as palavras são interditas.

Presenciam, no espelho de ser,
A torneira que pinga em si,
A poeira e as caspas dos panos
Que, sobre os ombros,
Encobrem o que não querem
Ver e viver.
Mas vão.

SOBERBA
A. R. Falcão – maio de 2015
Em águas desconhecidas,
Entro a pé.
Pela pele, perscruto a lama insidiosa.

Num dia estranho desses,
Despertei, ainda sob o lençol,
E tive, de olhos abertos,
Um sonho funesto:

Em tempos remotos,
Vasculhando territórios incógnitos,
Numa manhã de abril,
Dei-me, num sobressalto, com sítio arruinado,
Frente a  meu esquecido irmão,
(morto)
Maculado e inaudito,
Em meio à terra destroçada 
E aos cadáveres da batalha vencida.

Depois de socorrê-lo, apaziguá-lo
E longo prosear,
Passei-lhe um segredo,
Em obediência a nosso pai,
Grafado num manuscrito
Há muito oculto.
E ele o leu, sem hesitação,
Entre o medo e a sobranceria:

"Sob a sola de teus pés,
Sobre as palmilhas de tuas botas,
Grassa uma maldição
Que desconheces.

Tuas mãos, em manhã inesperada,
Arrancarão da terra
Qualquer arranjo de vida.
Então, verás morrer,
Diante de teus olhos esgazeados,
A vianda de teus filhos.

A fome será tanta
Que vos restarão o entredevorar,
A devastação.
Assim, fartos de sangue,
Das paisagens derribadas,
Tu e a sobra dos teus
Fareis a fome, aos poucos
Abrigar as migalhas,
Que engolireis com sofreguidão desmedida.

Os sobrevivos,  mas não tu,
adormecerão por sete dias e sete noites.
No desespero, amputarás teus pés
E atirarás as botas às feras dos rios.
Em vão:
É tua asneira, teu tormento infrutuoso.

Acabarás quedo teus dias,
Sem audiência, teu fio de voz.
Por fim, em zanga, fundarás, para ti, uma religião
E sofrerás teus invernos nas orações estranhas,
Na única companhia dos destroços de teu cão,
Outrora fiel, outrora inteiro,
Que o resto de teus descendentes terão partido.
Verás, com olhos corrompidos,
As choças consumidas pelas chamas
E será confirmada a profecia.
Sobrará um fiapo de ti, a carregar como sina”.

Então, olhou-me em desamparo,
Dobrou os papéis, travou-se mudo
E ergueu-se como que amparado
Por mistura de orgulho e andaime débil.

Cumprido, em parte, o vaticínio,
Ainda sob a ira e a noite de seu sobrevindo silêncio,
Segui viagem a insondáveis divisas,
Entre a melancolia e a desídia,
Livre, para sempre, do fardo maldito.

Alheio à cama, descalço,
Constrito, acendi um cigarro,
Bebi um uísque sobre a lama e
Fui fazer o que as pessoas fazem:
Carregar o cadáver de si na prisão do dia.