quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

                       

                     ISTO E AQUILO

Os brancos desenham as palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. [Davi Kopenawa Yanomami]

Se a palavra que você vai pronunciar não é mais bela que o silêncio, não a pronuncie. [Preceito sufi]


Nessa madrugada, na parede de meu quarto escuro, projetou-se um retângulo de luz que, em intervalos regulares, surgia e desaparecia. A princípio, instigante. Depois, descobri: é que meu vizinho, em outro edifício, acendeu um abajur e manteve a janela ligeiramente aberta, de forma que a cortina se movia com a força da brisa noturna, cortando a luz e forjando um pisca-pisca.
 
Penso nas palavras que designam e nas coisas mesmas. É uma situação análoga: a imagem em minha parede fez as vezes de um signo linguístico; a luz do abajur, a cortina embalada, a brisa, tudo é o referente. A distância que os aproxima e separa - signo e referente - é uma encrenca que sempre amofinou o homem, dono da boca e dos olhos que veem.
 
Eis a curiosa imprecisão de que ele se serve para sondar o indizível e, assim, enformar, no verbo, o possível entre a voz silente e o silêncio audível - a palavra escrita. A matéria do poema e do referente inalcançável. Um dormir na escuridão da manhã, no intervalo da palavra para a coisa.

                                                                                                                                                     A. R. Falcão - janeiro de 2015

O EVENTO

Eu fui ao enterro
E ainda indago:
O que pede um morto?
O abandono de meu olhar
Pela troca com seu vazio
Das águas no dentro.
Ver o que não está ali;
O repouso dos movimentos,
Matérias no embate
Das distâncias.
A dispensa na ânsia das falas:
Um aglomerado de sons
E silêncio na busca vã
De um sentido em fuga;
Desconfortável como o infinito
Na mudez das pedras.
A velocidade do "fui"
De um passarinho.

                                                                            A. R. Falcão - janeiro de 2015


A PROPÓSITO - 7 DE JANEIRO DE 2015


Uma coisa é causar danos morais a outrem, outra é deixar-se danificar. Se a liberdade de expressar-se é, em si, um bem a zelar sempre, combatê-la através de danos físicos irreparáveis (ou quaisquer naturezas de danos outros) é um mal a repudiar e enfrentar. A nós, ocidentais, de afinidades democráticas, sentir-se moralmente danificado vez ou outra é pôr-se vulnerável, sobretudo quando apoiado em convicções de bases frágeis, é um mal-pensado, um irrefletido.



Em pensamento, o que me contraria me alimenta e me estimula. Às vezes, simplesmente me faz rir, a depender da forma como chega a mim. O insulto e a ira insana são para ser ignorados. Tomar distância.



Pensado por um, dispensado por outro, e que todos estejam a pensar e a dizer, de que modo for. A força bruta, sim, é inaceitável em qualquer circunstância, porque pressupõe o fim do diálogo, da troca de idéias, da dança de enlace e desenlace argumentativos, o húmus da vida inteligente.



Sabe-se que o modo descriminado e degradado como vive a comunidade islâmica no solo europeu, as prisões com fanáticos muçulmanos dando proteção e "ensinamentos" são terra fértil para a barbárie a que se assistiu nesse janeiro. Segue, então, a enxurrada de hipocrisia pelas mãos da "media" e dos chefes de governo. A torrente de palavrórios retumbantes já nos intoxicou. Enquanto isso, os horrores idênticos cometidos no continente africano são solenemente relegados a notinhas de pé de página e ignorados pela manada das marchas públicas. Nada contra marchas; coisa de branco e tudo volta a um mesmo cada vez mais perigoso. É sempre pertinente não esquecer nossos horrores brasileiros: homicídios em progressão assustadora; roubos a toda hora, furtos, sequestros e o resto. Lá é aqui; aqui é lá, o inferno por onde trafegamos. Não querer enxergar, fingir que não se vê são formas requintadas de farisaísmo. Você aí, bata no peito e cante o Hino Nacional.



O Alcorão, em momento algum, determina o dano irreparável (a morte) como a luta justa contra a blasfêmia. O livro que prescreve o ato está na Bíblia: Levítico, capítulo 24, versículo 16: "Quem blasfemar contra o nome do Senhor deverá morrer e toda comunidade o apedrejará ". "No Islã, a blasfêmia é um tema de discussão intelectual, mais que um assunto de punição física". [Maulana Wahidreddin Khan, estudiosa islâmica].



Estamos é diante da velha ignorância, parturiente de toda espécie de fanatismos, extremismos ou fundamentalismos (políticos ou religiosos). Pensar bem exige plasticidade, mobilidade e flexibilidade. Perdoem-me tanto "ismos" e "dades". Nada permanece, tudo passa. A vida segue e, em muitos casos, a morte perde o trem.

A. R. Falcão - janeiro de 2015