O BÊBADO E O MAR
A embriaguez é uma forma peculiar e,
ao mesmo tempo, comum de reclusão; você se encharca de um líquido estranho ao
corpo, que o atira a um processo de dissolução em que todas as atitudes sociais
estabelecidas se dissipam; quando esses nós rígida e prolongadamente atados,
impostos e autoimpostos, ao longo da vida pública, se estilhaçam na explosão do
porre e na aniquilação da ressaca; como o mar ao não se conformar com os
limites impostos pelas barreiras naturais e artificiais à sua expansão.
Repare como o bêbado assim como
destrói o que fisicamente o cerca através de pancadas, tombos e trombadas
involuntárias, destrói-se no desarticulado da elocução, excessiva e inutilmente
expandida - o interlocutor fugiu pela janela - diluindo-se no líquido que anteriormente ingeriu; num
contínuo alternar-se entre maré cheia e vazante, esta, a reclusão do
autoengolir-se quando não mais restam garrafas e copos a esvaziar e nem esqueleto
firme para sustentar-se, restando-lhe as horizontais do chão e da cama. E o
horizonte de seus próprios monstros. Submerso sob a superfície da solidão
inexorável, comum a todos, que, inevitavelmente, também desaparecerão. Farelos
de memórias.
Marés influenciadas por uma segunda,
antiga e incógnita lua que orbita em torno de uma existência subitamente
percebida como precária e destituída de sentido. Então, os outros vão embora -
às vezes, para sempre. Resta-lhe recolher os cacos e andrajos para mover-se de
novo, pública e privadamente, na perversão da autocomplacência ou na urgente
necessidade de deslocar a vida para a frente. Sem novamente saber bem pra quê.
Como o mar, o bêbado anda deitado.
fotografia de Vivian Maier