terça-feira, 30 de maio de 2017


LÁ LONGE NA BAHIA

Morta minha mãe
A facadas.
Criado por minha avó,
Arrasto carroça.
Gosto de alguma coisa
Que me entre pela boca,
Dendê, pimenta e o...
Pelo pulmão,
Tabaco, maconha e o...
Que me entre pelos olhos,
O azul do céu, a alegria de crianças e o...
Quando estou doente,
O chão de meus asfaltos.

segunda-feira, 29 de maio de 2017


O BÊBADO E O MAR

A embriaguez é uma forma peculiar e, ao mesmo tempo, comum de reclusão; você se encharca de um líquido estranho ao corpo, que o atira a um processo de dissolução em que todas as atitudes sociais estabelecidas se dissipam; quando esses nós rígida e prolongadamente atados, impostos e autoimpostos, ao longo da vida pública, se estilhaçam na explosão do porre e na aniquilação da ressaca; como o mar ao não se conformar com os limites impostos pelas barreiras naturais e artificiais à sua expansão.

Repare como o bêbado assim como destrói o que fisicamente o cerca através de pancadas, tombos e trombadas involuntárias, destrói-se no desarticulado da elocução, excessiva e inutilmente expandida - o interlocutor fugiu pela janela - diluindo-se  no líquido que anteriormente ingeriu; num contínuo alternar-se entre maré cheia e vazante, esta, a reclusão do autoengolir-se quando não mais restam garrafas e copos a esvaziar e nem esqueleto firme para sustentar-se, restando-lhe as horizontais do chão e da cama. E o horizonte de seus próprios monstros. Submerso sob a superfície da solidão inexorável, comum a todos, que, inevitavelmente, também desaparecerão. Farelos de memórias.


Marés influenciadas por uma segunda, antiga e incógnita lua que orbita em torno de uma existência subitamente percebida como precária e destituída de sentido. Então, os outros vão embora - às vezes, para sempre. Resta-lhe recolher os cacos e andrajos para mover-se de novo, pública e privadamente, na perversão da autocomplacência ou na urgente necessidade de deslocar a vida para a frente. Sem novamente saber bem pra quê. Como o mar, o bêbado anda deitado.

fotografia de Vivian Maier

SOBRE A SONHAÇÃO
a Juliana

O sonhador é sempre suspeito, porque manipulado pelo sonho. Ao narrar o sonhado - o que já fez para si - o submete à lógica da narrativa em vigília, impregnada do trinômio causa-consequência-efeito, tão estranho ao evento onírico. O sonho é memória em desordem, desenraizada, como imaginação alucinada, sua análoga; em si, o sonho já é tentativa de apreender matéria simbólica errática, indestinada, que, a todo instante, escapa dos grampos da racionalidade.

Ocorre que, sem o sonho, a pessoa acaba prisioneira de sua incompletude natural, de seu indelével vazio. O sonho a preenche e ilumina o escuro de seus mais íntimos abismos - um milagre. Quando um outro se põe a interpretá-lo, ou pelo menos tenta, escolhe tarefa das mais ingratas e infrutíferas - a interpretação é uma caça cega a um inefável sentido, tão cara à poesia - o que não lhe tira o mérito nem a generosidade, do amigo(a) ou do(a) profissional. É quando a intimidade, por pudor, se faz tentacular. E a interpretação tem, de mim, toda a gratidão.


A. R. Falcão - maio de 17