quinta-feira, 30 de abril de 2015


PERFIL REVISITADO


Tenho pensado muito sobre minha inadequação a este mundo brasileiro: não tenho automóvel (nem quero); não tenho smartphone, Ipad (nem quero); em casa, não tenho acesso à Internet; o micro-ondas quebrou, quebrado fique; a televisão é inoperante e falta não faz; aprecio a fotografia preto-e-branco e as câmeras analógicas. "Vendo a mãe" pra não sair. Venero o silêncio, a solidão e a companhia dos livros. O repouso é diurno, a vigília, noturna - o momento da leitura, da escrita e do desenho. Só não escapo ainda da escravidão remunerada. Logo chegará o dia - antes que morra - em que caminharei sem destino e me deixarei abraçar pelos pijamas. E serei quase feliz. Feliz inteiro é presepada.

O AMANHÃ

Em Jambuati,
Passarinhos deitaram a falar,
Muriçocas começaram a correr,
As formigas, a voar
E os caracóis adoeceram.
Indiferente,
Só Esmeralda, antiquada e faceira,
Da janela não via,
Estampado,
O desejado fim deste mundo.

E AGORA?

O porteiro é o mesmo.
A rua é a do ano inteiro.
O ponto é o mesmo.
O ônibus vai ao mesmo lugar.
O motorista é o mesmo.
Os mesmos passageiros
Estão no mesmo lugar.
Desço no mesmo ponto
E vou ao mesmo endereço.
Eu é que não sou
Eu,
O José de ontem e anteontem.
Hoje sou Maria,
A que sempre fui
Dobrada no velho quarto escuro.

CESSAÇÃO

No frenesi on-line
De nossos tempos,
O carteiro pedestre
Despe-se da farda,
Abre as asas novinhas
E vai serenar-se
Nas virtuais nuvens do abandono.

terça-feira, 28 de abril de 2015


ALGUMAS OBSERVAÇÕES AO ACASO

1. A língua portuguesa, para a grande maioria, é um angu de caroço, notadamente no que se refere às concordâncias. Desconfio de que a maioria acostumou-se à comodidade e conforto comunicativos, proporcionados pelo cobertor da precariedade expandida. "As menina foi pra lá e a gente ficamos aqui".

2. Dois ativistas debatendo num boteco de esquina põem no chinelo as comadres que se mordem no portão.

3. Por força de lei, dois fumantes, em colóquio na calçada, fazem simetria com aqueles dois catadores de papelão ali na faina ingrata.

4. A misericórdia considerada pelo algoz é mais provável que aquela insinuada pelo fisco.

5. O "pulo do gato" na conjunção carnal é expressamente interdito no seio (epa!) dos Congregados Marianos.

6. No metrô, surrupie duas carteiras por dia. Em seis meses, você estará apto para a posse de uma cadeira em qualquer parlamento brasileiro.

7. Bêbado que se preza sempre bebe de lado para pensarem que só tomou a metade. O copo fica sob o balcão para que os retardatários nem pensem que continua molhando o bico.

8.  Morrer num pronto-socorro de hospital público é tão prosaico quanto morrer sob um viaduto nas marginais. Nos dois casos, há pelo menos a proteção de um teto. Já é um consolo.

9. Fique tranquilo: do jeito que as coisas caminham, sua aposentadoria só será concedida quando você for lembrado na missa de sétimo dia. A não ser que seja companheirão daquele barnabé chinfrim. Aí...

10. Professores do Brasil, conformem-se: prato feito é um mixórdia de nutrientes que seu vale-refeição não cobre.

11. Para certas chefias de governo, “crise hídrica” é mais ou menos assim: se chove muito, é porque está chovendo (enchentes); se não, é porque não está chovendo (secas). Reclamem, pois, com quem é do ramo: o bispo. E estamos conversados.

12. Se para ouvir música de fato, é preciso fechar os olhos; para ver com acuidade, é necessário retirar fones de ouvido e guardar a maquininha. No Brasil, nem bem se ouve, nem bem se vê.

13. Silêncio é requisito essencial para a boa leitura. Como aqui a regra é a logorreia numa logomaquia infinita, pouco importa. Do que se lê, não se entende patavina.

14. Uma hipótese é condição prévia para o agrupamento de eventos pertinentes e a justa pergunta é preliminar para a boa pesquisa. Aqui, realizado um projeto, não é preciso ter ocorrido nem uma coisa nem outra, basta o carimbo certo.

15. Em São Paulo, o poder público resolveu definitivamente o sério problema das árvores cadentes: arboriza a cidade com árvores mortas. Assim, a população sabe que aquelas vão cair. Não é genial?!

16. Pela manhã, o apaixonado por aritmética olha o relógio, verifica o número de quilômetros percorridos e seu tempo gasto; pelo Ipad, conhece a quantidade de mortos pelo mundo, o montante de cadáveres nas rodovias e a extensão do engarrafamento. Pela leitura das embalagens à sua frente, o número de calorias a consumir. Depois, banhado, vestido, apaziguado e mais sadio, põe-se a calcular o imposto devido, que é abril e o Leão não espera. É um craque. 

17. Você patina ao aduzir pra si indagações sem fim.. Esqueça. Filomeno que é feliz, em sua inteligência, só existem agás.

 18. Entre a história da filosofia, v.1, sobre a mesa e o bulício das crianças no quintal, há um vácuo em que só as maritacas sobrevivem.                                                                                                                                   

                                                                                                                                                    

segunda-feira, 27 de abril de 2015


21

1. O momento mágico da conversação está no silêncio entre as falas.

2. O que verdadeiramente vale a pena é visitarmos cotidianamente o mistério do mundo.

3. O presente será o passado, seu futuro; foi também o futuro, seu passado. Daí, depreende-se que o presente não é. O tempo está de folga.

4. O erro é o alicerce do acerto. Sem ele, a casa cai. Não se deve temê-lo, mas, apreciá-lo com condescendência.

5. A morte tem dons incogitáveis: faz, num estalar de dedos, nascer, em cada um dos herdeiros presumidos e descendentes, o avarento insuspeitado.

6. Fique esperto: importantes estudos contemporâneos concluíram que a demência senil precoce decorre do número de vezes que o indivíduo, perfilado, cantou o Hino Nacional. Maior o número, breve é o tempo até a caduquice.

7. Na horta da vida, regar o medo da morte é a receita certa para um velório sem fim prognosticável.

8. A permanência em filas (quaisquer) e a espera alongada (por qualquer coisa) é causa direta de depressão crônica. Volte pra casa e esqueça.

9. A estupidez do automóvel é patente: ele não carrega seu corpo, é você que o carrega nas costas e no bolso.

10. Essa discussão hodierna sobre gênero é de ontem, do tempo de Foucault. Moderninho é ser hermafrodita.

11. A vantagem do ursinho de pelúcia sobre o cachorrinho peludo (nos braços, na bolsa ou na coleira) é que, por mais tempo, você permanece infantil. Animal tem prazo de validade e, um dia, você vai chorar feito bobo, mas com carcaça de adulto.

12. A proximidade entre o smartphone e o apedeuta eletrificado é uma espécie de autismo com hora marcada.

13. Desconfio que o selfie é o subterfúgio do idiota: a tentativa de escapar da sua condição de ser um nada ao lado de alguma coisa.

14. Passeio no shopping é detenção voluntária com carteira vazia no bolso.

15. Antigamente havia o "arroz de festa", hoje existe o "arroz de manifestação".

16. Viajantes são figuras do passado. Hoje, o que se vê são mamíferos presos à coleira do guia em pacotes turísticos na porta do Louvre.

17. No restaurante da moda, experimente pedir nada em vez de comida (dá no mesmo). O nada lhe será servido, é a força do hábito. Se pedir alimentação, não se surpreenda: o nada também lhe será servido, é a força do capital sobre sua burrice.

18. Inteligência é do imponderável. Esperteza é parecer inteligente sem sê-lo. Basta pronunciar, de forma solene, "sustentabilidade" e "empoderar" com se fossem de sua primeira infância. E não se esqueça de candidatar-se a um cargo público. Tem muito gente que se elegeu.

19. O Brasil tem muitas coisas curiosas: se você nasce aqui, diz-se que é brasileiro quando deveriam dizer qualquer outra coisa de igual insignificância, que ser brasileiro, em alguns lugares, compromete.

20. O eurodescendente e o afrodescendente tomaram muitas cervejas. Na hora de pagar, fugiram em disparada. É o que chamam de "comunhão das raças". Coisas do Brasil.

21. Se você "encheu a cara", não se envergonhe. No Brasil, o poder público está de pileque desde o longínquo ano de 1500. Tome outra pra rebater. Sempre é você quem paga a conta. Sentir vergonha...


A. R. Falcão - abril de 2015