segunda-feira, 26 de setembro de 2016


JÁ ERA TEMPO
A Paola

Embora tenha as pernas e ainda possa saltá-lo, não resisto a aproximar meus olhos deste muro diante de mim. Como se hipnotizada por sua inevitabilidade. É um muro de virtudes vegetais. Nasceu como erva daninha. Inicialmente não notado, foi ganhando altura e corpo; hoje me cerca sem cerimônia, me lança ao calabouço. Surge o sol, vem o dia, segue a noite e deixo-me deitada a seus pés. Sei que ainda posso. Entretanto, cada vez mais, tenho cada vez menos disposição de transpô-lo, ele que cresce avidamente.


As noites vão se tornando mais longas como fios de meus cabelos. Minhas roupas se esfarraparão, até que, despojada de tudo, me largarei em indesejada nudez, plena de mim mesma. Há de servir-me a pele vulnerável. Sei que, coberta de pedras, tomarei a forma de ovo mineral, ciente de que ainda posso quebrar-lhe a casca granítica. Já era tempo e vai-se o tempo como um rio de milagres adiados. Me deixarei assim, no aguardo de uma ave metafísica que há de chocar-me. Sei que ainda posso. Vejo-me lá fora com nitidez, a capinar as ervas que crescem sob a vigilância branca da lua. Nunca adormeço em vão, que tenho sonhos a engendrar. Sei que ainda posso.

MAÇADA OU A ANGÚSTIA DOS OUTROS

Há algum tempo, uma coisa intrigava Nicolau: por que o número de religiosos, falsos e verdadeiros, aumentava tanto? Católicos carismáticos, evangélicos de toda espécie, místicos desvairados, crentes "fashions", por aí afora. Fanáticos de toda  gama. Este é o ponto, a religião nem tanto. Configuram manadas; coisa fora de controle. E ele estava intrigado, amuado. O pior é que acabavam sempre por tirar-lhe o sossego que tanto prezava. Não é que, num outro dia, certo grupo de insanos soltos, escapados do repouso doméstico, quiseram porque quiseram convertê-lo à força e atirá-lo num albergue para desencaminhados? Por sorte e esperteza, com alguma agilidade inesperada e providencial, conseguiu escapar e escafedeu-se pelo mundo das campinas, ravinas, cavernas e dos riachos doces e, o melhor de tudo, vazio de gentes.

Bem, mas lá seguia pela estrada Nicolau com seu velho saco*, tranquilo em suas meditações e angústias amenas. A manhã começava agradável e ensolarada. Os insetos e passarinhos já estavam assanhados, ele perscrutava o horizonte (plural no caso dele) quando se deparou com uma aldeiazinha lá longe.  Não sabia que, dessa vez, o dia vinha acerbo, mas sentia algo no ar - estava tudo tão formidável! Mais tarde, indagar-se-ia: por que não se desviou a tempo e tomou destino vário pelo campo verde e largo?

Sem dar com o caso, inadvertidamente, entrou pela aldeia engraçadinha: galinhas e pintinhos pela rua, vira-latas se coçando nas sombras, jegues espantando moscas com os rabos, palmas, velhos sentados nas poucas e amplas varandas, roupas nos varais dos fundos, muitas mangueiras e goiabeiras, passarinhos aos montes, crianças, a indefectível capela sem padre, essas coisas do mundinho do sertão.  E seguiu seus passos seguros e preguiçosos para, sem querer, dar na frente da capela. Deu com a testa na parede.

Em sua frente,  o destino aziago. Foi logo interpelado por um crente daqueles, os das severas convicções. É o que parecia; não suspeitava que fosse um domingo depois das rezas nem que aquele fosse o zelador do templo tosco. Como poderia?

- Você que é o famoso Nicolau dos caminhos perdidos? De Bíblia na mão, foi logo interrogando com sua voz aguda. Nicolau não se dava bem com agudos.
- Sim, sou. Severa era sua fisionomia, sabia que a bela manhã lhe traíra.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Quantas quiser se estiver desocupado. Eu sempre estou. É a minha ocupação. Mas,hoje, agora, que seja uma só.
- Diz a lenda que o senhor não crê em nada. Como pode? Deus está aqui a nos ver e nos proteger. Não acredita?
- Não. Creio em muito pouca coisa. Como, por exemplo: amanhã será outro dia; ontem já aconteceu. Isto me basta para suprir quaisquer carências de fé, coisa estranha.
- Mas o senhor não acha que ele governa o mundo?
- Ele quem, senhor? E o mundo é lá governado? O que vejo por aí é só desgoverno. O mundo existe nos braços do acaso, das causas não anunciadas. Elas simplesmente vão entrando pela casa. Somos efeito, consequência vadia.
- Mas... E você aí com esse cigarro na boca. Faz mal.
Com a ira quase sob controle, logo emendou, brusquidão:
-Não tem "mas". E mais: o que faz mal é a vida. A vida é que mata. Para não morrer, basta não nascer. Este é o segredo. Pense bem, nascer pra quê? Felizes mesmo são aqueles que não nasceram ou já nasceram mortos. O resto é conversa e remédios , quando os há, dos postos de saúde e crençazinha em profusão. Miséria,miséria. Não quero ser  rude. Com licença, que vou indo, um riacho me espera. O fanático arregalou os olhos apavorado, recebeu um empurrão e, depois, saiu em disparada demente. A eloquência foi letal.

Para Nicolau, outra conversa maçante. O dia estava iluminado, lindo para tamanho pesadelo. Parar só no bem-bom. Foi o que fez. Seguiu em frente como nunca deixa de fazer. Mais alguns quilômetros e estava à beira de um riacho, nas sombras dos arbustos marginais. Não pensou em nada que não fosse aquilo: caçou minhocas na lama da franja das águas, montou a isca no precioso anzol e lançou a linha e tudo para o fundo do riacho. Tinha o almoço, estava feito. Por sobremesa, algumas mangas colhidas de passagem na aldeia do crente fanático, burro e enfadonho. O bem-bom estava ali, a seu alcance.


* O SACO DE NICOLAU

Num dia qualquer, num bairro burguês qualquer, em sua última parada nas vizinhanças urbanas, Nicolau que, por essa época, andava de mãos vazias, já resolvido a largar-se pelo mundo, decidiu escabichar os lixos das redondezas. Foi quando encontrou o tal saco e outras coisinhas mais: um velho canivete de bom tamanho (bem cuidado, serviria), um lápis e um caderno estropiado, sem uso, uma bússola quebrada (a calhar), um pedaço de linha de pesca já atada a anzol (olha que sorte - ele não entendia nada de nós), meias de lã furadas, um velho chapéu de palha que daria para o gasto, um casaco manchado, um copo plástico e um garfo enferrujado (bem cuidado, serviria), também plástico, um prato, uma caixa de fósforos “cheiinha”, um "aurelinho" em desacordo com o acordo e outras bugigangas de utilidade incerta, mas vai saber...

Nicolau recolheu tudo ao saco para que, depois, desse um jeito nas migalhas. Foi o que fez. Naquele dia, deu-se por satisfeito e foi embora feliz. O mundo grande o esperava. Começava ali sua solitária jornada em noite enluarada. Bom presságio para quem não acredita nisso.

NA CABEÇA

A vida é sagrada. É curioso que um cético [ver Maçada ou a Angústia dos Outros] e pessimista de nomeada pense algo assim, mas é o que Nicolau pensa, com algumas ressalvas. Trabalha, "grosso modo", sobre duas noções criadas por ele: o uso vital da vida e o uso mortal. A sacralidade estaria no primeiro; o danoso, no segundo. Vital é o gozo da dádiva (do nada, de ninguém) em ser livre das amarras que o cotidiano civilizatório impõe, particularmente nas metrópoles e suas injunções, onde as pessoas se amontoam. Mortal é o trabalho embrutecedor, os compromissos infindáveis das convenções sociais, o organismo submetido ao relógio da servidão nos empregos, a quantificação obsedante de todas as esferas da vida, as estatísticas duvidosas de controle, a saúde monitorada pela medicina mercantil, pelas academias de ginástica, pela alimentação transformada em dietas da insuportável "qualidade de vida", pela "autoestima" portátil dos consultórios de variada procedência etc. Em suma, a simples e estupefaciente instrumentalização do corpo com um único e quase oculto fito: aumentar a produtividade.

O caráter dominador dessa avalanche tornou-se tão avassalador que ao ser humano não sobrou escapatória, daí o ineludível pessimismo de Nicolau. Ele não vê mais saída, é o fim. Por isso largou tudo e fugiu para o contramundo, sem qualquer esperança, que não é coisa dele, que ele execra [ver Coisas de Nicolau]. Nicolau é desistência. A vida que preferiu levar não é receita para ninguém, não supõe seguidores, que não se pretende guru, é mais um antiguru. Sua vida presente é apenas o modo que escolheu para seus últimos anos, para se despedir da peculiar sacralidade da vida que concebeu para si. Ele está por aí com seu sorriso desassombrado, em qualquer lugar, menos aqui nas grandes cidades, nos empregos, na patologia das vidas familiares, nos amores sempre doentes, nas carências insaciáveis, no consumo conspícuo, nas novas tecnologias escravizadoras e tudo mais que todos estão fartos de conhecer e sofrer. Às vezes, sem nem sequer saber do lamaçal em que estão atolados.


Há quem sorria de prazer com o lodo imundo pela garganta. Sabe-lhe a chocolate. Esse tipo de mamífero enche as ruas, as redes sociais, os centros de compras e imagina que pensa. Não para Nicolau, o iludido apenas regurgita o que se lhe é oferecido sem a menor cerimônia pelo "marketing" de todas as horas. Cerimônia para quê? Ele não gosta? Que se entupa portanto, não passa de um saco vazio de crítica, de pensamentos e idéias. Nicolau está certo? Difícil dizer, ele jamais gostaria de julgar-se certo em qualquer coisa. É um homem  das incertezas. Ele agora quer é recolher-se, em sossego, desacompanhado, a seus riachos, suas reflexões e angústias amenas. Não se deixa pegar: plana nas nuvens das desconfianças e das dúvidas axiais.