sábado, 22 de novembro de 2008

Recortes de Belezas

Extraído da resenha de Marcos Flamínio Peres sobre O Paraíso das Damas (tradução de Joana Canêdo) de Émile Zola publicada na Folha de S. Paulo.
Além da beleza do texto, chamou-me a atenção o que o trecho diz por si, sua atualidade, a experiência do ser humano mergulhado na vã sedução do consumo. Basta ler:

“Do outro lado da rua, o Paraíso das Damas acendia extensas fileiras de lampiões a gás. E ela se aproximou da porta, novamente atraída pela rua [...]Através dos vidros empalidecidos por um bafo quente, notava-se um pulular vago de claridades, todo um interior confuso de usina. As vitrines pareciam naufragar; distinguia-se apenas, logo defronte, a neve das rendas, cuja brancura era avivada pelos vidros brilhantemente iluminados por uma fila de lampiões. E, naquela pretensa capela, as confecções avultavam-se em vigor, o grande mantô de veludo, ornado de uma pele prateada de raposa, levava o perfil de uma mulher sem cabeça, que parecia correr sob a chuva para alguma festa, para as sombras desconhecidas de Paris.
Cedendo à sedução, Denise chegara até a porta, sem se preocupar com os respingos de chuva que a molhavam. A essa hora da noite, com seu brilho de fornalha, o Paraíso das Damas acabava de capturá-la por inteiro. Na grande cidade, negra e muda sob a chuva, nessa Paris que ela ignorava, ele incendiava como um farol, parecendo irradiar toda a luz e a vida do bairro. Ela sonhava seu futuro ali, com muito trabalho para educar as crianças, mas também muitas outras coisas. Ela não sabia bem o quê, entrevia apenas coisas longínquas, cujo desejo e o temor faziam-na estremecer. A idéia daquela mulher morta nas fundações voltou-lhe, ela sentiu medo, imaginou ver todas aquelas luzes sangrarem; então a brancura das rendas a acalmou, uma esperança subia-lhe ao coração, toda uma certeza de felicidade. Enquanto isso, a névoa de água volante esfriava-lhe as mãos e acalmava sua febre”

Nada a dizer, dois poemas de José Paulo Paes:

“Noturno”

O apito do trem perfura a noite.
As paredes do quarto se encolhem.
O mundo fica mais vasto.

Tantos livros para ler
Tantas ruas por andar
Tantas mulheres a possuir...

Quando chega a madrugada
O adolescente dorme por fim
Certo de que o dia vai nascer especialmente para ele.

“Momento”

Visto assim do alto
No cair da tarde
O automóvel imóvel
Sob os galhos da árvore
Parece estar rumo
A algum outro lugar
Onde abolida a própria
Idéia de viagem
As coisas pudessem
Livremente se entregar
Ao gosto inato
Da dissolução – e é noite.

Wittgenstein refletindo sobre a leitura de suas proposições. Aqui, tocou-me a analogia com a experiência de “escalar” um belo poema sobre o qual a gente não sabe bem o que dizer e nem precisa. Basta aquela gratificante sensação de beleza:

“Minhas proposições são elucidativas desta maneira: aquele que me compreende acaba por reconhecê-las como sem sentido, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por elas)”.