quinta-feira, 28 de julho de 2011






"A DOCE CANÇÃO QUE O SONO VEM EMBALAR"

Repara o quanto as crianças resistem ao sono. Não querem dormir nem se afastar. A cama é, assim, certa forma de prisão, uma privação de movimentos e voz. Fechar os olhos em repouso e silêncio é perder o melhor da festa, que está sempre a vir. Com isso em vista, elas inventaram o sonho (uma forma de desforra), que, entretanto, não se fez perfeito. Quando sonhamos, não temos idade. O que já é um consolo.








Salvador, julho de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CADA QUAL CADA QUAL

Fobia, cara! O tio que guiava o busão era um motoristo. Um safado otário. A cobradora era cobrador, cara de bueiro. Tinha uma mina que é ligeira, não é de ferver banco, desce logo. Todo dia. Tá na minha mira. Mole! Tinha outro. Fácil, véio. Esse eu não conhecia.

Sou motorista. Parei, subiu um maloqueiro, figurinha manjada, aqui das quebrada. Sei dele por um colega da garagem. Em carro meu, nunca aconteceu. Paga direitinho e desce sempre no final. Qualquer dia... vai saber.

Sou cobrador. Entrou um cabra nojento, desses que a gente vê na televisão; desses que se arrepende e vem pra nossa igreja. Na minha comunidade, tá cheio. Ficou ali na parte da frente, nos banco de deficiente. Meti a chave na gaveta. Fingi de morto.

Sou sacoleiro. Entrou um passageiro: boné, bermuda, camiseta e chinelão. O tipo. Moleque, tranquera, bandidinho de merda. Fiquei no medo. Tava com a bolsa cheia.

Sou enfermeira. Sorte minha que essa foi a última vez. Me recupero e adeus periferia. Nunca mais piso nessas condução.

Sou sorveteiro. O ônibus passou a mil, nem parou no ponto. Tá vendo ali? Só ouvi o barulho. Não vi nada não, tava muito escuro. O senhor sabe se morreu alguém? Ninguém?! A vida tem cada uma! Só o que não muda não muda.

Salvador, julho de 2011

domingo, 24 de julho de 2011

IDA E VOLTA

Sozinhos
São sete milhões.
O dia amanhece em noite escura.
O ronronar-ruminar do tráfego.
O cata-feijão cotidiano.
Os passos parvos rumo
Ao destino vazio do mesmo.
Sou medonho.

Meus dedos dedilham um mingau
De repulsiva espera
Por bocas ocas e olhares vadios.
Paus secos, venenos frescos.
Sou fedorento.

Acordar e afundar
No desfazer a barba assanhada,
Num corpo que esmola o repouso doce do tempo,
Sem a marca das horas,
Sem a vez do água-sabão
E do pão-café. Sou acelerado.

A noite amanhecerá em dia escuro.
Virei a sonhar um sono qualquer
Nesse lençol amarfanhado,
Nessa cama que não emite convite.
Sou estranho, desmantelado.

Salvador, julho de 2011