sábado, 24 de janeiro de 2009

RECORTES DE BELEZA 2

Seguem dois textos, um poema de Ferreira Gullar e um fragmento de artigo de Oliver Sacks, extraídos do periódico Piauí, nº 28/jan. 2009. O primeiro deverá constar do novo livro de F.G., ainda em produção.

NO DITO O MUDO RESTARÁ
Desordem

meu assunto por enquanto é a desordem
o que se nega
à fala

o que escapa
ao acurado apuro
do dizer
a borra
a sobra
a escória
a incúria
o não-caber

ou talvez
pior dizendo
o que a linguagem
não disse
por não dizer
porque
por mais que diga
e porque disse
sempre restará
no dito o mudo
o por dizer
já que não é da linguagem
dizer tudo

ou é
se se
entender
que
o que foi dito
é o que é
e por isso
nada há mais por dizer

portanto
o meu assunto
é o não-dito não
o sublime indizível
mas o fortuito
e possível
de ser dito
e não o é
por descuido
ou por intuito
já que
somente a própria coisa
se diz toda
(por ser muda)

é próprio da palavra
não dizer
ou
melhor dizendo
só dizer

a palavra
é o não ser
isto porque
a coisa
(o ser)
repousa
fora de toda
fala
ou ordem sintática

e o dito (a
não-coisa) é só
gramática

o jasmim, por exemplo,
é um sistema
como a aranha
(diferente do poema)
o perfume
é um tipo de desordem
a que o olfato
põe ordem
e sorve
mas o que ele diz
excede à ordem
do falar
por isso
que

desordenando
a escrita
talvez se diga
aquela perfunctória
ordem inaudita

uma pera
também
funciona
como máquina
viva
enquanto quando
podre
entra ela (o sistema)
em desordem:
instala-se a anarquia
dos ácidos
e a polpa se desfaz
em tumulto
e diz
assim
bem mais do que dizia
ao extravasar
o dizer

dir-se-ia
então
que
para dizer
a desordem
da fruta
teria a fala
- como a pera -
que se desfazer?
que de certo
modo
apodrecer?

mas a fala
é só rumor
e idéia
não exala
odor
(como a pera)
pela casa inteira

a fala, meu amor,
não fede
nem cheira


Extraído de Darwin e o significado das flores
Oliver Sacks

"A árvore da vida revela, à primeira vista, a antiguidade dos organismos vivos e o parentesco entre todos eles, e que existe (como Darwin definia antes a evolução) uma 'descendência com modificação' a cada subdivisão dos seus ramos. Mostra também que a evolução nunca para, nunca se repete, nunca volta atrás. Mostra ainda a irrevocabilidade da extinção - se um ramo é cortado, um certo caminho evolucionário se perde para sempre.
Eu me alegro com o conhecimento da minha singularidade, da minha antiguidade e do meu parentesco biológico com todas as demais formas de vida. Esse conhecimento me dá raízes, permite que me sinta à vontade no mundo natural, faz-me ter consciência do meu significado biológico, independentemente do meu papel no mundo cultural e humano. E embora a vida animal seja muito mais complexa que a vida vegetal, e a vida humana muito mais complexa que a dos outros animais, atribuo essa consciência do meu significado biológico à epifania de Darwin quanto ao significado das flores, e ao meu próprio vislumbre desse fato num jardim de Londres, quase uma vida inteira atrás."

terça-feira, 20 de janeiro de 2009


AS FALAS TURVAS

1

Ali, na mesa ampla da cozinha, depois de uma longa jornada sobre legumes, verduras, frutos, folhas, pimentas e rizomas, tudo diligentemente descascado e cortado para o cozido do almoço farto; ela, numa comunhão difícil de raiva e resignação, dizia pra si e para quem, mais perto ainda, pudesse ouvir:
- Oh, meu Deus, matai-me enquanto ainda sou anjo!

Viturina, que havia participado de tudo, prontamente corrigia num arremedo de cochicho:
- Não é assim não! É: “Oh, meu Deus, matai-me enquanto ainda sou virgem!” – rindo com fisionomia deliciosamente marota.

Nós, que assistíamos a tudo curiosas, com as narinas impregnadas das emanações do panelão no fogo, ficávamos assim: meio sem entender nada, meio querendo saber por quê, sem coragem de perguntar.


2

Elas estavam recostadas no gramado do parque público, acompanhadas de uma garota de seus dez anos. As três eram muito magras, miúdas, e portavam, cada uma delas, um saco plástico de supermercado, sujo e amarfanhado. Colhiam frutinhas amarelas que haviam caído de algumas poucas árvores sob as quais se recompunham do sol devastador.

A impressão que tinha era que caminhavam há horas e que mais ainda caminhariam. Ao passar por ali, em minha jornada vadia, vi que se levantaram e iriam prosseguir. O acaso nos pôs quase lado a lado, de forma que conseguia escutar o que falavam entre si. A menina limitava-se a ouvir e seguir um pouco mais à frente, como eu.

Conversavam, em fala veloz, sobre frutas e preferências. Uma delas tinha uma peculiaridade bastante saliente: pontuava, a cada duas palavras, com um sonoro “Caralho!”. Foram tantos naqueles trezentos metros, que acabaram por nos separar já nas margens da autopista, que a menina virou-se para trás e atirou:
- Oh mainha, você não muda seu perfume não?!

A interpelada não hesitou:
- Porra! Cala boca, sua merdinha. Não enche o saco!

Eu subi a passarela, parei no ponto mais alto da estrutura e fiquei entre apreciar o mar e a contemplação daquelas três que seguiam em frente, mais e mais menores, falando sem parar. Menos a menina; na frente, ouvindo o perfume materno.

Cidade da Bahia, janeiro de 2009
E OS GATUNOS CONTINUAM FELIZES