O
TÉDIO DA COISA
A
propósito da morte recente de Madiba, vem, mais uma vez, à mente, indagações
sobre a inevitável santificação de pessoas públicas mortas, mormente
aquelas que tiveram fins violentos ou existências marcadas por intenso
sofrimento em nome de causas diversas.
Esse
fenômeno de cultura me faz pensar que é mais um caso a dizer sobre a
civilização cristã. Mas tenho sérias dúvidas. A redenção pelo sacrifício (da
vida ou da liberdade) perpassa diversas culturas, não apenas a nossa. Aqui, num
mundo em que Cristo é figura proeminente, não poderia haver algo diverso – a
narrativa evangélica é essencialmente sacrificial como se sabe.
E
Cristo é, por óbvio, sempre o centro da cena em todos os múltiplos ritos que seguem
o passamento de um homem notável. Madiba é apenas o mais recente santo.
Todas as mortes sequentes serão tomadas, entendidas e lembradas, por analogia,
como extensões daquela do Nazareno. Homens e vidas plurais equalizadas numa
mesma santificação. Como se todos morressem por nós, vulgares, afogados
em defeitos e pecados recorrentes. Os mortos são ícones morais únicos,
inalcançáveis, mas a seguir e imitar como modelos de virtude. Astros do rock,
políticos, religiosos e líderes de toda espécie.
Sem
dúvida, eles são nossos, porque é difícil separar a grandeza intrínseca
daquela atribuída, circunscritos todos a uma mesma cultura. Não santificamos
ídolos estranhos a nosso mundo. Daí a analogia com o sacrifício maior da
vivência cristã.
Assim,
depois de mortos, esses homens notáveis são destituídos de sua individualidade
empírica e surgem somente como referências morais – abstraídos de sua
historicidade e circunstâncias mundanas. Tornam-se mitos. Curioso é que
este nosso mundo é visivelmente privado de sacralidade, mitologia efetiva e
magia. Se disso algo ainda existe, é apenas em sua forma degradada. E o que
temos? Espíritos vulgares agora apaziguados em suas más consciências – eles julgam
ter ainda valores, modelos morais. E mais uma vez mergulham em
autoengano.
Perdoem-me
por esta digressão. Na África do Sul, Madiba, ainda vivo, era cultuado como
ente portador de atributos divinatórios por algumas etnias. Eles não são
cristãos, fazem de outra forma porque ainda vivem num universo mágico.
E
aqui reside algo interessante e, de certa maneira, contraditório (sempre a
contradição). Esses mortos excepcionais, quando vivos, se notabilizaram por se
moverem na contramão de certa ordem contingente e suas ações trouxeram
consequências imensuráveis. Eles desarrumaram. Suas marcas. Ao serem santificados,
servem à pior espécie de conformismo. O que se dá nos espíritos vulgares? Uma
acomodação gigante pela culpa da qual se veem agora em arrependimento. A ideia
de que, ao se mirarem no exemplo do morto, aparece, mais uma vez, a promessa de
mudança em seus modos de conduta moral. O arrependimento será passageiro, até a
próxima grande morte. Assim, continuarão sempre os mesmos: profissionais
da redenção. Fariseus.
Os
funerais são sempre idênticos: a população em suas variadas manifestações de
pesar e a presença de chefetes de Estado sórdidos. Enquanto Madiba esteve preso
(27 anos), nada fizeram além de alguns atos puramente retóricos, aqui e ali.
Por baixo do pano, negócios se multiplicavam. Business as usual.
Os
homens desarrumadores, mortos, tomarão assim seus assentos no trem dos
esquecidos, entre as efemérides vazias. As beatas perderão seus terços, os
arranjos florais fúnebres e as lágrimas de hoje estarão ressecados. A vida
segue. As consciências voltam a seu repouso domingueiro. É do jogo.
A. R.
Falcão – dezembro de 2013