quinta-feira, 22 de setembro de 2016


COISAS DE NICOLAU

Nicolau, nesse fim de tarde, não estava bem. Uma irritação difusa o incomodava. Interrompeu sua caminhada e decidiu por sentar-se à beira daquele riacho. Quem sabe... Com uma vareta, ficou a cutucar a corrente límpida, quando, súbito, algo lhe veio à cabeça, vinha de uma última conversa com peregrinos, era isso mesmo que o incomodava, que resultou numa daquelas polêmicas ociosas. Lembrou-se então de seu pronunciamento provocador: "o deplorável de quaisquer esperanças é não impedir que nos livremos das inevitáveis decepções. O melhor é fugir delas, negá-las a todo custo. A esperança é um veneno com sabor de amoras e prazo de validade vencido. O decorrer do tempo e as surpresas do acaso é que comprometem seus frágeis alicerces. Coisa de ingênuos (falsos desejos propiciatórios) ou ignorantes (o contexto circundante lhes escapa). Melhor é viver sem tê-la e encarar cada momento, cada dia, de frente".


Depois viu que tinha alguma fome, comeu uma banana sem pressa, arrumou suas poucas coisas no velho saco e, determinado, mais calmo, dirigiu-se ao poente que avermelhava o firmamento de sempre.

terça-feira, 20 de setembro de 2016


ELE MESMO

Se não fosse a toalha
A dizer-lhe o que nem bem
Desejava ouvir,
Almoçaria sozinho.
Se não fosse o espelho
A revelar-lhe o outro
No mesmo,
Não veria ninguém.
Se não fossem os sapatos
A calçar-lhe os pés caminhantes,
Andaria sem fito, só de fato,
Somente em ônibus vazios.
Companhia pelos lados
É coisa de loucos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016


CONSOLO

Se o drama de viver
Fosse matar mosquitos
A pauladas,
Doce seria o amanhecer.
Se o mole de morrer,
Fosse o repouso final
Sobre lençois brancos,
Imaculadamente limpos,
Afável seria a indesejada escuridão das noites.
Por que lamentar então?
De olhos bem abertos,
Cruze os braços e ouça,
Ternamente,
O despertar dos sabiás
Antes mesmo que o sol lave o rosto,
E o céu varra a casa.

NADA SEM NA E DA

Eu não estava tão certo
De que estavam ali: um navio naufragado
E Cecília M. na superfície.
Sei que nem mesmo estava só,
Um nada que soluçava.
As areias eram tantas, eu constatava.
Os grãos em silêncio de luz e sem as pernas de voz e vontade.
Depois, muito depois,
Foram as águas, essas mortais sem inclinação para poços.
O tempo? Deixem o tempo.
Este não vale o tempo.
Restou-me morder papéis de raiva.
Mastigar unhas para nada fazer.
E as dores eram só para começar.
E imaginei que via um figo e um bago no cacho de uvas.
Havia também uma linda mulher que cantava,
Uma doce melodia como só elas sabem realizar.
Eu possuía um segredo: uma estrela no bolso
Que me revelou seu parto.
O quê? Não sei, talvez um nada.
Então acordei, sei que não sonhei nas areias,
Mas vi quem me viu,
Um espelho refletia a morte parida, as águas esquecidas e sujas de sangue.
Tornei-me o que ainda sou:
Uma pedra sem brilho que ainda pesa sobre papéis
Ou repousa no fundo de um rio.