sexta-feira, 15 de julho de 2011



MEIA DÚZIA DE UM JOGO

1. O ás que desponta entre os dedos grita como modo de outorgar-se sequência. Desdobrar-se-á diferente e único. Nenhuma das outras cartas fala ou pede agora; elas outras estão mergulhadas em seu tédio de qualquer, de comum. E eu não gosto de jogar, de acompanhar as armações aleatórias, os ajuntamentos, as somas. Jogar, a mim, é enfadonho. Não surpreende.

Se, para alguns, o jogo guarda analogia com a vida, eu o vejo como um ledo engano de percepção. Um clichê. Por aleatório que seja, perdemo-nos é no montar sequências: trabalhos, amizades, família e textos. Nascemos e morremos sós. Que bobagem é essa?! Os ases é que nos lembram
únicos.

2. Chove lá fora. E, depois de uma certa idade, germinamos reminiscências. Organizamos aquilo tudo em narrativas que nos enchem de prazer, se acompanhados. Trocas de lembranças. Na verdade, trocas de organizações temporais e, nestas, o prazer de refazê-las como jogos armados. O tempo, uma medida para o movimento estúpido da existência; nas lembranças, é medida de um jogo entre o caroço e a polpa, no grosso do abacate mesmo. Eu me lembro, narro e sou maduro, e sou íntegro, sempre na prisão do fruto. Mera aparência.

3. Chove lá fora. Muito tarde, brigar por motivos fúteis é alerta: desvencilhar-se de ramos, ou de braços, que nos querem juntos e afogados. É o que há a fazer: atravessar silenciosamente a floresta e descansar o cadáver. Alisar as cartas sem rever o jogo. Se viver parecesse com cartas embaralhadas a armar destinos, o que seria a bruta noção da insignificância e fragilidade? Ter apostado a alma e perdê-la? Nem sequer tocamos a música das sibilas. Que bobagem é essa?!

4. Chove lá fora. E todas as ações, como lances, alçam-nos para o vácuo, entre o caroço e o fruto. Sacudimo-nos o tempo todo. A árvore nos amadurece e a terra nos apodrece. Somos a insignificância de um entre muitos e a possibilidade do um contra muitos: as outras árvores, os outros frutos. O novo baralho, refeito no entrelaçar-se renovado das mesmas cartas. O mesmo destino da mesma árvore, no mesmo quintal, até que...

5. Chove lá fora. E chega de alegorias - um outro jogo. A palavra é uma arma pela qual e contra qual nos armamos. Conviver com ela nos prega a peça: como numa maré vazante, quanto mais a lançamos ao mar (prisioneira de uma garrafa ou ao vento) mais percebemos a inutilidade do pequeno frente ao grande. Simples: o que vai não volta e, se for, não será; na volta, o mesmo. A mesma palavra, da mesma garrafa, no mesmo mar. Até que... Não e não!

6. Chove lá fora. E eu direi que te amo e tu acabarás dizendo que me amas. Entre o caroço e a polpa, entre a água e a areia, uma coisa qualquer nos escapa e desaparecerá na grande noite, sem que nenhuma sorte ou ás estejam escorregando entre os mil dedos do medo de viver.

Embaralha as cartas e faze o jogo. E o jogo (ou o mar ou o texto) é o mesmo sempre: eu te amo e tu me amas.

12 de janeiro de 2002




ESSA VELHA SENHORA

Literatura é sempre uma outra coisa. Se assim não fosse, há muito, a escrita como arte teria desaparecido na noite. Sua busca traz, na garupa, as palavras que, de novo arranjadas, nos encantam. O encontro.

Muito diferentes são os livros em que o texto não passa de mero suporte para o enredo. O segredo está na urdidura, mas desaparece na sucessão e superfície dos eventos. O que importa acontece na costura das palavras. Já me incomoda tanto essa cansada metáfora do tecido. Quero uma outra, outra coisa. Belo seria um jardim de pedras.

Como no desenho, a alma vem no traço; está dissimulada na figura. A unidade que seduz, a primeira impressão, é uma porta de entrada, um vestíbulo. Há que se perder nos aposentos - a pluralidade de sentidos. O elixir da sagração.

Aqueles livros que carregamos pela vida são labirintos em que nos perdemos por ato voluntário. Protegem-nos da desarrumação que nos é exterior e conforta-nos naquela que nos é interior. Inescapáveis ambas. Daí a necessidade de viver com a arte. São tristes as pessoas que se acertam vendo apenas um parafuso, um prego. E mesmo essas não se apartam da música ligeira e da dança de salão. Das canções. A uma pessoa que se anuncia por melodia assobiada devemos, por regalo, um primeiro voto de confiança.

Salvador, julho de 2011

quinta-feira, 14 de julho de 2011





LEITURAS DE FÉRIAS
a Izolda

Sobre a vida humana não ter sentido algum, muito se disse. Tanto quanto, sobre a mão pesada do acaso, na urdidura do tecido que ora repousa no balcão do destino. Ao nos debruçarmos sobre a vida de um indivíduo que já sabemos morto, de existência ficcional ou empírica, o que logo fazemos é, no tecido de sua vida, separar os fios do acaso daqueles construídos pelas relações de causalidade e consequência. Aqui, obra humana da racionalidade; ali, atributo divino, condensado na expressão banal: está nas mãos de deus, ou, de outro modo, esteve nas mãos de deus. Fora, portanto, de nossos domínios.

A vida, num romance, é apresentada de tal forma que o leitor se apercebe de que há algo além do acaso; o que imprime traços de um sentido que, na existência empírica, lhe escapa. Quantas pessoas não se sentem tentadas, diante da morte acidental de um indivíduo de suas relações, a pronunciar o clichê: ... mas ele procurou? Está aí esboçado o desenho de um sentido que lhes convém admitir intimamente diante do desconforto produzido pelo súbito vazio que a morte estúpida lhes impôs. Mas também, na morte lenta que se insinua no vazio das horas que se esvaem dolorosamente.

Para si ou para outrem, a vida comentada ou analisada tem com fantasma a vida narrada, pela voz ou pela escrita. Em ambos os casos, a busca é busca de uma razão confortante em que camadas de causalidades e consequencias se acumulam com o fito de resolvermos o peso do luto insanável. No tecido desfeito da existência examinada, é preciso que os fios do acaso sejam convenientemente ocultados para a visibilidade dos fio da causalidade. Se a narrativa ficcional nos mostrasse um panorama diverso, que acomodação restaria ao leitor, que tem, na fruição do romance, seu melhor travesseiro? Nesse campo, a literatura moderna, de Joyce a Kafka, engendrou um deserto, não um bosque, nem mesmo uma pradaria. Não por acaso, os livros de ficção, hoje, mais vendidos são aqueles que abraçam as narrativas mais convencionais, os alívios mais vulgares. O homem contemporâneo é uma figura triste.

Neste julho, enquanto me dou ao enfado de ler um romance ruim (As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks), releio também o célebre texto de Walter Benjamin, O Narrador. Aquele me levou a este. Aqui, W.B. cita Lukács, em seu também célebre Teoria do Romance, onde está escrito: ... Somente o romance ... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal, podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo ... Desse combate ... emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência ... Somente no romance ... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma ... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda sua vida ... na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência ... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível.

Eu me pergunto: o que faz um romance senão simular essa unidade? Pensar o sentido da vida como algo apreensível é uma tolice demasiadamente humana, porque ele não passa de uma promessa para sempre não-cumprida. Assim mesmo: funda-se e fixa-se nisso. No tempo de uma leitura, o leitor conforta-se com uma ilusão, que parece lhe bastar - não vejo por que W. Benjamin separa a narrativa (oral) do romance (escrita). Por estes dois procedimentos, leitor e ouvinte se alimentam do mesmo: o inefável que, momentaneamente, se cristaliza; para, logo depois, evaporar-se no árido da existência empírica, real. Chega também a separar o leitor de romance (ainda segundo ele, solitário por excelência) do leitor de poesia (não-solitário, que ainda teria o recurso da declamação). Volto a perguntar: quer coisa mais comum que um leitor de romance desejar nos contar o livro recém-lido? Ora, não posso entender, não posso concordar. Sei: entendimentos são impedimentos - geram prisioneiros de convicções. Melhor teria sido calar-se e não ouvir (ou vice-versa). No fim, acaba tudo bem.