quarta-feira, 20 de maio de 2015


JUDIARIAS

Numa distante região da distante Mordália, muito tempo atrás, havia bizarros costumes. Entre eles, as sentenças judiciais impingidas aos praticantes de ilícitos. Vale a pena conhecê-las.

Numa única aldeia (e só naquela, conhecida pelo singelo nome Orys) com alto índice de criminalidade, nas condenações à morte, as execuções se davam de várias maneiras. A que mais empregavam era aquela na qual encaravam a vítima por torturantes horas até que esta, ao não suportá-las, sucumbia. Outra bastante curiosa é a que consistia nisso: diante de uma coluna de formigas em trabalho, o sentenciado devia escolher, entre tantas, uma única delas, que seria marcada pelos algozes,  e segui-la com os olhos nas inúmeras idas e vindas. Tudo acontecia numa diminuta arena que continha o ninho e a fonte alimentar dos insetos himenópteros. Como as formigas operárias são incansáveis, a vítima, depois de tormentoso torcicolo, tinha seus músculos cervicais irremediavelmente danificados. Alguns mamíferos imolados imploravam pela degola tamanha era a dor. Podiam ser atendidos desde que a família fizesse gordos depósitos em ouro nos cofres públicos e satisfizesse o imprevisível edil.

Foram tentadas tais práticas em outras aldeias. Sem sucesso. Como a inveja também mata, um aldeão malévolo (sempre eles) apresentou aos formidáveis verdugos de Orys a besta, que quedaram fascinados por sua eficácia. Alguns reacionários fizeram eloquentes protestos (sempre eles), mas, como foram votos vencidos, acabaram desistindo. Com o passar dos anos, aquelas inauditas práticas passadas caíram no esquecimento. A forca só foi introduzida um século depois para gáudio da população local, que se divertia às gargalhadas com o espernear dos condenados; particularmente as crianças. 

         Deve-se o registro de alguns desses inusitados eventos a uma pessoa incerta, talvez a um viajante que passasse uma temporada por ali. Para somar-se ao fantástico de tudo, mais este: em seu último dia na aldeia, logo depois de acordar, manhã já avançada, foi até a janela de seu aposento e espantou-se com algo estranho: um improvável silêncio de pedra, não havia mais ninguém na aldeia, nem mesmo os cachorros vagabundos de sempre, nenhum pássaro. Assim, tomou uma decisão: arrumou, às pressas, suas coisas e, como os outros todos, desapareceu dali para nunca mais passar por perto. Evadiu-se para contar o que não pôde esquecer e em que ninguém mais acredita.

Hoje, não há vestígios desse povo. A região está submersa sob as águas de um gigantesco e sinistro lago, onde é sempre noite. Como já dizia Nietzsche, o que aconteceu é passado; o que escolhemos contar é história. Fonte dessas sobreditas informações: Biblioteca do Congresso, secção: Judiarias de Estado. Onde fica Mordália, onde fica esse tal lago? Ninguém sabe, que não é para saber. Talvez em todo lugar. Nem fiz bem em narrar.


A. R. Falcão - maio de 2015

terça-feira, 19 de maio de 2015


"SELFIE-BRAZIL"

O quadro, ora e com grossas pinceladas, está assim:

DESCONTINUIDADE. DESCOMPASSO. DESPREPARO. AFOITEZA. INIQUIDADE. DISSIMULAÇÃO. BRUTALIDADE. SANDICE. USURA. DESMEDIDA. IGNORÂNCIA. ALEIVOSIA. TORPEZA. GANÂNCIA.
ALIENAÇÃO. AUTOENGANO. IGNOMÍNIA. MESQUINHEZ. ATIVISMO. ESCULHAMBAÇÃO. LENIÊNCIA. OPRESSÃO. TUTELA. ARROGÂNCIA. INVEJA. DESMAZELO. FANATISMO. LEVIANDADE. DESÍDIA. EGOÍSMO. INCONFIABILIDADE. OSTENTAÇÃO. IMPOSTURA. LEGIFERAÇÃO.
FROUXIDÃO. CINISMO. SOFREGUIDÃO. FRIVOLIDADE. ESTRIDÊNCIA. COVARDIA. AFETAÇÃO. INTOLERÂNCIA. EXIBICIONISMO. VAIDADE. OBUMBRAMENTO. INCIVILIDADE. DESCOMPROMISSO. DESCORTESIA. HIPOCRISIA. TRIBALISMO. VAZIO.


A. R. Falcão - maio de 2015

segunda-feira, 18 de maio de 2015


AS ESCURAS MORDIDAS

Não se apoquente, não se amofine:
Qualquer opção, qualquer ato consumado,
Como todo lance de dados,
Carrega, em seu parafuso,
A porca dos riscos.
Ninguém, infenso a bordas de abismos,
Está a salvo de danos vários,
Lançado que foi, à vida, desconjuntado.
Para os que se atiram à noite de si,
Para outros que não se despem
Do pijama da pasmaceira protegida,
Tanto a todos faz: recato ou dissipação.
Sobre eles,
A tranquilidade inescapável
Do instante inesperado,
O abismo de todos nós:
O berço da inexistência.
Por que melhor seria
Existir?


A. R. Falcão - maio de 2015