quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

UM OUTRO RECORTE DE BELEZA

De Jorges Luis Borges, em O Outro, o Mesmo, da Companhia das Letras, 2009.

Ao Filho

Não sou eu quem te engendra. São os mortos.
São meu pai, o pai dele e os precedentes;
são os que um longo dédalo de amores
traçaram desde Adão e dos desertos
de Caim e de Abel, em certa aurora
tão antiga que já é mitologia,
e chegam, sangue e âmago, a este dia
do futuro, em que te engendro agora.
Sinto sua multidão. Somos nós dois
e os dois, reunidos, somos tu e os próximos
filhos que engendrarás. Os derradeiros
e os do vermelho Adão. Sou esses outros,
também. A eternidade está nas coisas
do tempo, que são formas pressurosas.

tradução de Heloisa Jahn

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010


ENQUANTO ANOITECE LÁ FORA

Lendo um artigo sobre Alain Resnais, tido como o cineasta do tempo e da memória, veio-me à lembrança algumas poucas cenas de O Ano Passado em Marienbad (1961) e Hiroshima, meu Amor (1959).

Mais que esses filmes, bem mais, estão solidamente fixadas a sala quase sempre vazia do Cine Bijou em minhas tardes vadias, a antiga Praça Roosevelt em destruição nos anos 60/70 e a avidez com que devorava livros e filmes. Uma concupiscência por conhecer tudo o que se tinha como importante no “Mundo da Cultura”. Tinha meus 18/20 anos, cabelos compridos, AI-5 e a tralha toda daquele Brasil. Praticava porcamente teatro, desenhava, escrevia, editava uma revista marginal e vigiava o medo. A tal ponto a profusão de palavras e imagens passavam por meus olhos que acabavam misturadas numa sopa indigesta, confusa e indescritível.

A “Cultura” vinha por soma, acréscimo e dissipação. Uma pilha na iminência de desabar. Hoje, com 60 anos, parece-me tão inútil como compreensível a maneira como o jovem vai integrando-se ao ambiente que deseja habitar. Em mim, algo como: “Ser jovem é uma perda de tempo, porque é tanta a ânsia por abarcar urgentemente tudo aquilo que lhe interessa que, em consequência, acaba ficando de mãos vazias”. Mas não tenho convicção disso.

O estereótipo diz que o jovem tem amplo apetite; come sem mastigar e digere mal o que lhe desaba pelo esôfago. O velho, diversamente, come pouco, mastiga muito e devagar (cuidado com a prótese!), digere com lerdeza. Aproxima-se dos ruminantes.

Um tem todo o tempo do mundo e age como se fosse morrer ontem; o outro vai morrer amanhã e age como se tivesse... Estranha simetria. A incontornável imagem no outro lado do espelho.

Numa época em que há emergência desmedida para qualquer tolice que se apresenta em figurino sedutor; em que os produtos (por que não também as pessoas?) “envelhecem” entre um lançamento e outro; em que tudo é permutável e descartável (destino: lixo); como fico, tentando abraçar, em conceitos, esse par – juventude e envelhecimento? Sem que disso resulte sabedoria alguma, o mais remoto alento?

Fica a imagem eloquente dessa modernidade em que nos afundamos: a do motorista estúpido que imprime velocidade ao veículo para logo parar diante do semáforo vermelho, que, implacável, já o aguardava.

O Cine Bijou e aquela Praça Roosevelt desapareceram, como tantas outras coisas fazem nas metrópoles hodiernas, enquanto você me lê. Os filmes, ainda se pode vê-los em retrospectivas; os livros estão nos bons sebos. Minha juventude dissolveu-se na velhice que se avizinha ostensiva, outrora oculta. O “Mundo da Cultura” transbordou para além de todas as fronteiras então nem sequer imaginadas. Não é mais possível abarcá-lo (e foi em algum momento?), portanto a celeridade juvenil deve girar em falso, num lodaçal tecnológico sempre fresco, prontamente substituído às segundas-feiras. Palavras não consolam.

Elucubro: o que parecia um par distinto a princípio tem cada um de seus dois constituintes se sobrepondo alternadamente. Da distinção à unidade, à equivalência. Secas nuns lugares, enchentes em outros. Algumas árvores floridas e outras na espera. Sucessivamente.

Ajeito o travesseiro, viro de lado o esqueleto e apago o abajur. Perda de tempo em compasso de cágado. Anoitece em mim.

Salvador, 25 de janeiro de 2010