terça-feira, 24 de julho de 2012

DUETO

Às Margens do Parque

As uvaias de outono caem das altas galhadas. Vão se encontrar mortas comigo no piso molhado das manhãs escuras de fim de maio.Quando vou trabalhar, nas calçadas mórbidas de São Paulo, entre cacos de dor. Chamam-me a atenção porque me trazem nuvens de infância, as das bocas molhadas de frutos fartos de quintais e de passarinhos. Sigo em frente.

Jovens bêbados, moças prostituídas saem de portas e becos sombrios;automóveis histéricos, gritos e agitação findando. Sigo em frente. Sou agredido, que estou só e caminho para o trabalho; vestido para o trabalho. Não para a dissipação da noite que nem mais me interessa e que já habitei. Não sou deste mundo. Não mais; na verdade, nunca fui.

A dissonância entre esses jovens e os trintões (quarentões, cinquentões?) é enorme. Entre mim e todos eles? Nem dizer. Se precede uma ogeriza a essas criaturas, procede um riso aberto ao lero-lero. Eles não sabem nada e me fecho. Não têm história, nem futuro. Articulam-se verbalmente como ébrios moribundos.

Ah, mas havia alguns entre eles, preciosos. Já os vi, estavam por aí, entre minhas mangueiras, abacateiros e goiabeiras. Depois, os deixei e tornei-me um deslocado. Hoje sou antiquado. Estou fora, um réu eterno.


Piso Molhado

Ainda noite escura, saio.
Vou trabalhar.
Entre meus dedos, os passos
Hesitantes de um andejo.
Desvios súbitos frente
Aos cachos de uvaias moribundas,
Os anfitriões do outono frio.

Nas minhas mãos, os desvãos da noite,
Do vinho e das carnes,
Da má digestão nas águas finas
Das manhãs oferecidas.

Nos silêncios arrombados
Pela cidade estúpida
Que perdeu o céu e o horizonte
Das formigas e abelhas em fuga.

Desenho, desvelo minhas passadas mecânicas,
Furando a noite desnutrida
Em busca de um mim afável,
Prisioneiro das mandíbulas
Do dia que grita e morde.


junho de 2012
DO ODOR DAS COISAS ANTIGAS

ADEUS

Quando, ontem, me disseram que as asas se dobram ali e se quebram acolá, fiquei apreensivo. Preparo-me para a fuga permanentemente. Minhas asas, já cansadas pela idade, pouco me adestram. Mas pensei, pensei em nó frígio - o que é incontornável e intransponível: fugir para onde? A mais inconveniente das indagações, a que me põe diante de mim e do tempo, do inamovível. Fugir? Não. Desaparecer. As asas serão as folhas secas sobre que até as árvores desconversam. Livre, serei memória, móvel como todas, intangível. Um chocolate esquecido no assento, no vagão de um trem sem trilhos.

EQUIVALÊNCIA

Como pássaros que nos oferecem mel,
Pousados como frutas
Nos galhos das nuvens.
Um sopro de encanto
Na esquina das madrugadas mais sinistras
De nosso recolhimento,
De nossa rosca sem fim,
No intestino de nosso travesseiro,
De nossa dor mais insincera,
De nossa autoindulgência
Mais vil. Nossa mais humana condição.
Uma vergonha surrupiada pelo oblívio.

SE LHE APROUVER

Licenças concedidas. Visitas se fazendo. Jardim tomado por mato e galinhas. Varanda ampla e vazia. Casacos e guarda-chuvas no vestíbulo. O fatídico envelope nas mãos. Mármores sentados diante de um esqueleto mole. Assuntos gravíssimos a tratar. Dia claro. Tanta dor. Minha infância lá tão próxima. Café fraco e frio no fundo das porcelanas desbotadas. Círios acesos nos quatro cantos da mesa, na refeição bizarra de nosso fim. Uma vida nos dedos trêmulos. Pousam lá fora, próximos, pardais tagarelas sem convites. Ouvir aquilo com o desejo de também voar. E estar ali como chumbo. A vida que foi de todos e é de ninguém. Sentir por inércia, mais uma vez, que todos nós, uns antes outros depois, seremos apodrecidos. O sol repentino. A luz varando as cortinas puídas. Por dentro, a noite mais íntima. As unhas que não cortei e a barba que não fiz. Cabelinhos nas entranhas das ventas, nas narinas indesejáveis. Choveu muito quando não deveria chover sobre meus erros. Longe, ouço um grito feminino que chama por crianças que desapareceram na farra das poças. Folhas úmidas, em franco ócio, no piso de madeira gasta da entrada. A porta aberta me concede permissão para voos mágicos. Não tenho para onde correr nem como evitar. Vontade que não depositei nos olhos que não pedi que se abrissem. Cimento-me e disponho-me em prontidão para o horror das falas afiadas no silêncio de frios das facas.

DO INÚTIL EM DIZER E PENSAR

Pois encheram minha infância de balinhas metafísicas. Deram-me censura, honra e medo. Tornei-me um homem capenga. O que assim chamam. Olho plantinhas que nascem, de qualquer modo, nos vãos das pedras. Olho as águas esparramadas e os quebrados da calçada. Lamento a música e o desespero das noites. Não sou daqui nem daí. O que vejo então? Pessoas mordendo lábios lacônicos. Prefiro insetos e as aranhinhas que tecem teias físicas e me dizem: você não passa de um saco de tripas empatando nossos dias. Sigo, com cautela, meus passos que vão à frente.

Salvador, 24 de julho de 2012

domingo, 22 de julho de 2012

MEXIDO


"A incapacidade de a linguagem encobrir a experiência real me fascina. Gosto da exposição do fracasso da linguagem, pois sempre haverá uma zona de indeterminação, de incompletude. A morte estará sempre à espreita, porque é a linguagem que a carrega dentro de si". Carlos de Brito e Mello


Duas palavras me causam um leve incômodo aí: "recobrir" e "morte". Ainda que concorde com o exposto, as trocaria por "revelar" e "silêncio" respectivamente. Não estaria dizendo coisa diferente de C.B.M: "revelar" remete a "véu" e, portanto, "cobrir", "encobrir". O "silêncio" precede e reveste a "morte". Os moribundos, pela ordem natural das coisas, em seus instantes finais, também se calam. A linguagem recolhe-se à sua insignificância, à sua impermanência e impertinência. Para morrer com o morto. Se a morte, na maioria das vezes, não manda aviso, a linguagem se engrandece à medida que se encolhe na fronteira de seus próprios limites; na insistência muda de quem não ousa falar. Seu último e escuro desejo. A linguagem passeia saltando silêncios.

Salvador, 16 de julho de 2012

NO ESPELHO, AOS 62

NO ESPELHO, AOS 62


Tão dolorida, tão dolorida...
Mostram-me espelhos – vejo outro rosto,
dizem meu nome... – vejo outra vida.

Cecília Meireles


Nomes fluídos separam o que me figuram de mim: Antônio Rebouças Falcão é o civil escriturado; Toninho, o que a família plasmou em anos iniciais e legou aos parentes e amigos mais antigos; Toniô, Toni, o que resolveram, por conta, deixar como crosta de fundo nas panelas mais velhas; Falcão, o nome público que adotei nas andanças profissionais; Falcon, Mr. Falco, o predileto (nem sei por quê) de garçons em botequins por aí; até Mr. Jô um deles adotou, o que imitava qualquer passarinho quando me avistava. Todos eles, nomes que, agora, fazem o vidro e a prata que afastam uma substância inefável e volátil (um eu difuso em mim daquele outro ali a me observar sem medo, a me vigiar). Pela ordem natural das coisas, o estrago está irremediavelmente feito.


Sou extremamente tóxico com meus próprios erros e, depois, com os, alheios. Sofro de mania judicativa. Não sou rotineiramente feliz. Oprimido que sou em espaço tão exíguo. Tudo piora. Só melhora o vôo do urubu. Prefiro a intensidade na alegria e na melancolia, que é meu estado mais frequente. Felicidade é farinha frívola em nossos tempos sombrios. Impaciente e ranzinza, só. Um urso polar, um eremita. Minha misantropia e ceticismo, os engulo no café da manhã.


Faço minha própria comida, lavo e passo minha própria roupa, na mão. Sou notívago. Prefiro estar onde não estão. Enquanto dormem, me ativo. Não suporto a servidão assalariada, bater ponto e cumprir horários num trabalho embrutecedor e estúpido; quase todos.

As ruas e o mundo lá fora me irritam em demasia. Espero que chova gasolina sobre eles, não obstante, gosto de caminhar para, na primeira oportunidade, recolher-me; não troco minha casa e seu silêncio povoado de livros por um tesouro de gregarismo bovino (confrarias, clubes esportivos, partidos políticos, credos e doutrinas de quaisquer espécies). As crenças são sonolentas, letargias deletérias.

Sou de pouca prosa e monologo com paredes, parlamento com pedras milenares. São os espelhos opacos de minha preferência. Nada falam, nada respondem. São fragmentos de mim que balançam nos varais da frágil existência. Por suposto, detesto telefones e conectividades virtuais. Prefiro o vento na cara e presenças que, empiricamente, se enfrentam, os olhos que se encaram na carne.

Quando ouço música, ouço-a baixo; prefiro a voz dos instrumentos; entretanto, vivo em tormenta íntima, em vendaval imaginativo. A contrapelo dos juízos pedestres, não habito a serenidade, busco desesperadamente o sossego, a preguiça prazenteira.


Choro com belezas e me comovem aqueles que esculpem delícias no simples deixar-se pensar, sonhar. Adoro canetas e papéis em branco, estas outras superfícies opacas, como espelhos que aguardam ordens.


Aprecio insetos e o assombro que me presenteiam os pássaros. O deslocamento fremente, os atilados sem permanência, a altivez suficiente.


Conforta-me saber que sou verbalmente feliz na mesa da palavra. Não me convidem, que não vou. Deixem-me ficar em momentos de paz flutuante, que, somados um a um, me encaminharão, um dia desses, para a cama que me espera irremediavelmente. É o repouso de todos os Zés Pereiras.



SALVADOR, 20 DE JULHO DE 2012