sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A CENA DE ONTEM

Ali
A manhã evanescia.
O cálice tombado
Babava a toalha até as franjas.
Gota a gota, o vinho esvaia,
Entregando as manchas
Ao velho tapete das antigas risadas.
O corpo estirado sobre o sofá
Devolvia à sala
O desprezo das costas
Pela ira da casa ferida.
O recado vazio derramava,
Entre a mão e o tecido,
A vontade indesculpável,
A noite flácida das intenções.
O relógio não mais insistia,
Ofegava em badalar.
Martelava, machucava.
A carne tombada dormia esquecida.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

PASSAGEM

As ruas estavam vazias e sujas naquela madrugada. Vira-latas remexendo lixo e alguns poucos bêbados largados nas calçadas.
Como já andavam por longos minutos sem trocar palavras, um deles resolveu quebrar o suspeito silêncio das mudas indagações:
- Você continua um pessimista incorrigível.
- Nem tanto.
- Como você diz isso?! Ainda há pouco, previu um 2012 bem pior que 2011. Guerras e crises assustadoras, desemprego, o escambal.
- Tudo bem, mas não pense que não garanto uma fatia de alegria no bolo da infelicidade geral. Ou vice-versa, se preferir.
- Não imagino como. Ou melhor: o versa eu imagino; mas o vice...
E o outro fez uma pausa eloqüente e respondeu-lhe sem esconder o riso dos lábios:
- Sabe onde escondo minha alegria? Nas mentiras que cometo e me divertem.
E seguiram adiante em sólido silêncio de solidões, flanando pelas ruas dos bairros centrais. As gargantas secas pediam cervejas finais. O sol queria nascer.
A.R. Falcão - Salvador, janeiro de 2012