segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A FORÇA ARMADA

Para a Natureza, essa coisa, o homem é uma insignificância. São sacos da mesma farinha estelar. Deveria nos bastar sabê-lo, ficar no ponto pelo tempo de uma existência e pegar o ônibus(esquife)errado. Mas convenhamos: poder devanear é uma bênção do Nada que a tudo e a nós antecede. Não resolve e também não atrapalha; ajuda a passar o tempo, essa outra coisa.

Para início de conversa, como é sobejamente sabido, no tempo de nossas vidas, uma hora a mais é, na verdade, uma hora a menos. A pessoa faz que não vê e vira-se para o outro lado; na verdade, incontáveis lados.

Deixa pra lá: omnes feriunt, ultima necat (todas as horas ferem, a última mata – alguns relógios antigos traziam esta sábia frase no mostrador). Na mesma pessoa, uma se lembra, outra se esquece. Tempus fugit (a inexorabilidade do tempo que escapa, fora de controle – relógios antigos mais uma vez). A célebre expressão carpe diem (o dia passa), tão cara ao Barroco, justifica, há séculos, os excessos que, eventual ou frequentemente, não evitamos. Bebamos, comamos, façamos amor, porque assim tão jovens nada disso faremos mais.

O dito homo sapiens, entre outras coisas, caracteriza-se pelo número de cisões. Para cada uma delas, um escudo peculiar. Da mesma forma que portas, muros, paredes e janelas nos escudam, afastando estranhos perigosos ou não-íntimos curiosos, as formalidades no trato social fazem as vezes desses; o próprio uso particular da linguagem desempenha, amiúde, papel análogo. O jargão do especialista, o siglês e o estilo alambicado ou enrugado são o espalhafato da força armada em gozo de poder. Mas há as formas discretas de ocultação. Não se deve, portanto, anexá-los a juízos morais dos quais não podem nunca escapar: hipocrisia, covardia(insegurança)e afetação são os mais usados; e têm lá sua pertinência.

A proliferação de escudos em nossas vidas chega a tal ponto que para tantas cisões, tantos escudos. Por isso, esse interessante mamífero é desde sempre um mistério. Observe como ele, em rigidez cadavérica, nos desampara e nos faz nus na insegurança dos néscios.

O limite máximo nesse número indeterminado de escudos está naquele intangível que criamos para nos proteger ou nos esconder de nós mesmos. É quando um "nós" (eu) desaparece tão completamente nessa espécie de névoa-escudo que passamos a carregar uma sombra, um fantasma apenas nosso, como se já nascêssemos com ele; a impressão que permanece. Na maioria das vezes, invisível a seu portador, mas não a terceiros, a certos terceiros: amigos(as)íntimos(as), amantes de fato, boas esposas ou bons maridos e competentes profissionais, especializados em desmoronar proteções inconvenientes, aquelas que nos tornam cegos para caminhar em direção à vida plena e à morte serena -este par inatingível, desconhecido. Todos fingem saber. Não sabem.

Em rotina medíocre, cotidiana, a vida segue num presente faminto, num eterno meio-dia; o sol a pino, invisível para nossos olhos. Não fazemos sombra, não vemos fantasmas próprios, e a lucidez é mera ilusão no claro da luz que ofusca. Num quase paradoxo, a vida diária é pouco reluzente. Pobres animais no pasto onde, em vão, comemos, defecamos, dormimos e sonhamos. Até que...

Salvador, 3 de janeiro de 2010, entre parentes.