CORPOS DUROS E BRANCOS
Uma dor de dente dura, em média, 48
horas. Aguente que passa. Depois o ente adormece, cai e chega a liberdade. O
dente é uma porta para a alma, que é uma usina nervosa. A alma é imortal
enquanto vivo estiver. A diplomacia, nessas conversações nefastas (a dor), está
a cargo de Lúcifer. Não brinque com ele. É claro que o cão quer infernizá-lo, é
de sua natureza por redundância. Alguns poetinhas de fim de semana gostam de
dizer: "A dor de dente dói na alma" quando tentam fugir do inevitável
"A dor de dente dói no dente", melhor, "A dor dói na raiz".
É axial. Alma é assunto para demônios interiores, estes produzem sofrimento e
suicídios desde sempre, desde o choro primordial.
Dentes? Melhor não tê-los, assim como
o melhor de tudo é não nascer - o gozo pleno da não-existência. O verdadeiro
paraíso que Eva, Adão e o famigerado deus resolveram estragar, está em outro
lugar. Atiraram-nos para as filas do SUS global e eterno. Espertos, não tinham
dentes. Depois da história da maçã, a coisa mudou. Mas lembre-se: os dentes são
cavilosos. Se ainda deseja mantê-los, a não ser que prefira engolir a mastigar
e ficar, na vida, condenado às sopas e suquinhos safados, esses corpos duros e
brancos vão, em seguidos momentos, traí-lo pela mão dos especialistas. Os
dentistas, na verdade, negociam com o demo um adiamento da banguelice
inexorável, contraespião da maldição na decrepitude, da qual ninguém escapa,
como juros do cheque especial, com os quais os referidos profissionais adoram
brindá-lo.
Depois de uma certa idade, não
gargalhe, dê sorrisos matreiros ou de qualquer outra espécie. Se você tiver
talento para o trato, ninguém vai perceber que, em vez de boca, tem um poço
escuro por onde passam cremes variados e desaforos. Entrará para a categoria
dos "bons e simpáticos velhinhos", sempre sorridentes, mesmo na
demência senil deprimente, já bem perto do paraíso.