quinta-feira, 13 de abril de 2017


CORPOS DUROS E BRANCOS

Uma dor de dente dura, em média, 48 horas. Aguente que passa. Depois o ente adormece, cai e chega a liberdade. O dente é uma porta para a alma, que é uma usina nervosa. A alma é imortal enquanto vivo estiver. A diplomacia, nessas conversações nefastas (a dor), está a cargo de Lúcifer. Não brinque com ele. É claro que o cão quer infernizá-lo, é de sua natureza por redundância. Alguns poetinhas de fim de semana gostam de dizer: "A dor de dente dói na alma" quando tentam fugir do inevitável "A dor de dente dói no dente", melhor, "A dor dói na raiz". É axial. Alma é assunto para demônios interiores, estes produzem sofrimento e suicídios desde sempre, desde o choro primordial.

Dentes? Melhor não tê-los, assim como o melhor de tudo é não nascer - o gozo pleno da não-existência. O verdadeiro paraíso que Eva, Adão e o famigerado deus resolveram estragar, está em outro lugar. Atiraram-nos para as filas do SUS global e eterno. Espertos, não tinham dentes. Depois da história da maçã, a coisa mudou. Mas lembre-se: os dentes são cavilosos. Se ainda deseja mantê-los, a não ser que prefira engolir a mastigar e ficar, na vida, condenado às sopas e suquinhos safados, esses corpos duros e brancos vão, em seguidos momentos, traí-lo pela mão dos especialistas. Os dentistas, na verdade, negociam com o demo um adiamento da banguelice inexorável, contraespião da maldição na decrepitude, da qual ninguém escapa, como juros do cheque especial, com os quais os referidos profissionais adoram brindá-lo.

Depois de uma certa idade, não gargalhe, dê sorrisos matreiros ou de qualquer outra espécie. Se você tiver talento para o trato, ninguém vai perceber que, em vez de boca, tem um poço escuro por onde passam cremes variados e desaforos. Entrará para a categoria dos "bons e simpáticos velhinhos", sempre sorridentes, mesmo na demência senil deprimente, já bem perto do paraíso.



quarta-feira, 12 de abril de 2017


OUTONO

Sem aviso prévio,
Essa brisa me trouxe
Uma folha seca,
Meu primeiro presente outonal.
Olho para o céu
E sei:
Daqui, adiante,
Serei um homem melhor
Ainda que pior,
Ainda que infame,
Sem norte, sem eira,
Com os dedos despidos das unhas,
Sem as chaves
De uma porta que nem posso abrir.

MÁ COMPANHIA ou a FOME

O que esta mão faz aqui
Que não faria ali?
Tire os dedos e os olhos
Do pudim,
Voe as asas sobre o deserto
De sua vontade.
Coloque a tigela sob a estrela
Vésper, a Vênus da manhã;
Longe de seu alcance.
E morda o dedão de seu pé
Sujo.
Com suas mãos,
Insisto,
Longe do pudim,
Repouse o peso sobre meu ombro
E, depois que apontar a lua,
Olhe para meu indicador,
Morda com sua volúpia
Sua solitária saliva.
Esta é a manhã primeva.
Não esqueça: tire os olhos do pudim.