quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017


SENILITUDE

Velhice é interioridade que se amplia para o vazio. Uma idade muito avançada parece caracterizar-se pela penetração numa sala vazia cujas paredes são povoadas por sucessivas gavetas, nas quais estão recolhidos eventos remotos e medianamente antigos. 

A vida interior do velho se dá pelo abrir aleatório de qualquer uma dessas gavetas e narrar, para si ou para interlocutor, o evento escolhido ou que escapou espontaneamente. Como o número de gavetas é limitado, as evocações tendem a repetir-se.

Nessa sala desprovida de móveis, objetos e pessoas, há unicamente o si no escuro silêncio das gavetas. O si de si assemelha-se a um pântano em que o velho está mergulhado, e estará progressivamente mais e mais afundado. A memória dos fatos recentes é muito rala; às vezes, desaparece, porque não existem recintos para armanezá-los.


A morte natural é um afundar-se definitivo no mais íntimo de si, de onde não haverá retorno; de olhos abertos ou fechados; acordado ou dormindo num sonho que não mais poderá ser lembrado ou narrado e, assim, todas as gavetas estarão, para sempre, lacradas. O enterro ou a cremação é a forma que os homens têm para demolir aquela sala das gavetas, para secar aquele pântano dos mergulhos. Restará aos descendentes simulacro dos eventos memoráveis, num arremedo de biografia oral, a maneira que o velho teve de não desaparecer em sua sobrevida. O si de si é muito esperto.

NADICA DE NADA

Às vezes, muito às vezes,
Uma formiga atravessa a mesa.
Quase sempre, um inseto alado
Cruza o ar em voo, sem escalas,
Para Paris. Eu fico.
Em minhas mãos, muitos camelos.
Em meus olhos, que são desertos úmidos,
Gotas das coisas muito antigas
Que coloriam sombras
Em meu quintal da infância.

UMA BAHIA SEM JILÓ

Escolher quiabos ou orações? Para minha vizinha de compras, orações; para mim, os primeiros (ou qualquer coisa) menos as segundas.
Alguns escolhem batatas, outros bananas. E todos saem cheios de sacolas para a manhã baiana, que é ensolarada e quente.
O mar larga-se supremo em seu repouso inquieto e nervoso de maré cheia.
Patrões e patroas dormem ou dirigem seus carros pratas, pretos ou brancos. Mania local (ou nacional) e tediosa em sua falta de personalidade. Os brasileiros tornaram-se "manadeiros". São todos burros, iguais e riem  do que não é pra que rir.

Os passarinhos sumiram. Asfalto não é pra eles. Talvez, para os peixes também; para os calangos, e todo o resto. Ao fundo, um "balança-bunda", que é algo intragável, permanente e identitário da chamada Bahia atual. "Triste Bahia" como já escreveu Gregório. E a horda segue inadimplente.

REFLEXÕES A ESMO

1. Sem ofensas: inventar uma religião é fascinante, porque tem um acento imaginativo e poético. Seguir uma religião, não. É pobreza de espírito.
2. Tarimba é o lastro de madeira sobre que os soldados se deitam antes de morrer na batalha. E, por insondável motivo, é também o lastro simbólico da experiência que se acumula, o que resulta em alguma sabedoria; onde o conhecimento pode repousar em sua provisoriedade.
3. O momento zero das relações sociais é levantar-se da cama. Seguem as abluções e assemelhados; escolher roupas e vestir-se; sentar-se à mesa, alimentar-se e sair para o mundo; deste você não escapa mais. Há o momento final. Deixe-se eviscerar, deixe que banhem seu cadáver, escolham sua roupa, o vistam e o maqueiem para seu velório. Mesmo aqui você não se livra das relações sociais. Esta maldição. Só há um jeito: não saia mais da cama.
4. Pensar que intimidade é a nudez compartilhada e o interpenetrar-se dos corpos é tolice. Intimidade é muito mais dividir silêncios amistosos e, talvez, ainda assim, seja uma definição insuficiente.
5. Encontrar o culpado por um dano é obsessão tão antiga quanto o homem. Fica a pergunta: ocorrido o dano, a vantagem está na justiça (aqui, irmã da vingança) ou no reparo ao feito? Há danos irreparáveis e, nesse caso, pouco importa o que se fizer. O mal feito não pode ser desfeito. Os reparáveis devem ser reparados por quem os cometeu. Se o malfeitor estiver na cadeia, não poderá reparar nada. Por isso os danos são intermináveis na história do homem. O conjunto de leis é sempre insuficiente e sua aplicação morosa. Há o risco da injustiça. O de hoje não é o de ontem. Paciência, resignação e alerta são bons parceiros desde muito, mas não satisfazem. Porém...
6. Repare como, no Natal, o evento recorrente são familiares comuns brigando por comida e se empobrecendo por presentes. No 25, comem restos e, no 26, correm aos bancos para chorar sobre as sobras. A burrice é um rito a respeitar.
7. No Brasil, ao comprar o seu mais moderno celular, você terá, como brinde, a sentença de morte. Nas quebradas, ele será vendido baratinho, baratinho. Como sua vida que se foi.
8. À noite, alguns dormem, outros tentam dormir. Os que dormem sonham. Alguns se lembram dos sonhos, outros os esquecem. Alguns contam-nos, outros emudecem, mas não esquecem. Em quaisquer de todos os casos, as torneiras, indiferentes, seguem pingando; o dia amanhece e já é hora de trabalhar. Que chatice!
9. Se alguém fizer cada dia diferente dos demais, todos os dias, no último (que é igual para todos), se perderá por falta de referências. Se alguém fizer cada dia idêntico aos demais, todos os dias, no último (que é igual para todos), não terá do que se lembrar. Basta pensar no derradeiro (mas não perceberá) que foi, como os outros, o mesmo.
10. Entre Gregório e seus familiares, havia um atrito ameno que se prolongava há algum tempo. Consistia no fato de que lhe solicitavam exames médicos para mera verificação, uma vez que os anos iam passando sem que fosse a um consultório, qualquer que fosse. Às vezes, emagrecia muito; depois, engordava. E, assim, ia levando. O homem era dado a certos abusos. Ele recusava com declaração severa: "Podem tirar o cavalinho da chuva. Sou forte o bastante para escapar de qualquer doença. Parece que vocês querem me ver doente. Que saco! O tempo passou e, em certa manhã, o encontraram morto na cama. Morrera, serenamente, de causas naturais. Sem nunca ter adoecido. Cumprira-se  a palavra. Parece que, do além, podiam ouvi-lo proclamar: "Viram, suas bestas?!".
11. Mont Tower, a autoridade maior, era tão vaidoso que suas profusas imagens espalhadas por seus domínios públicos não tinham como referente a pessoa empírica, mas reflexos especulares. Simplesmente porque, ao arrumar-se frente ao espelho palaciano, dali não sai mais. Quem ousaria avisá-lo de que há trabalho a fazer? Escolher o terno, um dia; a camisa, uma manhã; os sapatos, também; assim a gravata; pentear os cabelos, três horas e assim por diante.


12. No Brasil (em qualquer lugar), quando empresas (indivíduos também) dizem se arrepender das más condutas, fique de olho: ou no armazém perdões perderam valor ou as vozes ouvidas vinham de fitas gravadas, de origem ignorada. 

MANETA

Sobre esta mesa, havia
Palavras não-cruzadas,
Espalhadas sob meu olhar.
Depois, meus papéis embranqueceram.
A cabeça não, esta é um inferno.
Estou no litoral
Como estaria em qualquer lugar.
A meninada esparramada na pracinha
Trama planos escalafobéticos.
Desfruto a aragem nas orelhas, na nuca
E meu coração é quase macio.
O mar me aguarda aflito, ensimesmado
E a arrogância rasga os papéis
Sobre esta mesma mesa. Sobre mim.
O mesmo intransponível mim.


TODO MUNDO
                                             A IZOLDA
Era uma mata fechada,
Multifacetada.
Relacionar-se com a pessoa
Era mover-se por entre
Todos aqueles obstáculos:
Ressentimentos, silêncios insondáveis,
Sentenças definitivas, cobranças pétreas,
Rompantes, generosidades impensáveis,
Recolhimentos intransponíveis
E labirintos íntimos em que,
Uma vez acessados,
Nos perdíamos para sempre.
Sempre valia a pena
Tentar.


ANDERSON
Morri sozinho
Nessa vereda escura,
Em sombra das árvores mais redondas,
Nas aragens que me abraçavam
Entre os dedos e o medo.
Eu era. Era o quê?
Como um não, não era.
Então, fui atrás de uma bola,
Fui à lama negra
E me escondi
Onde vocês nunca me encontraram
E nem me encontrarão.
Minhas árvores, agora,
Por mim, estão florindo
E as manhãs vêm "alegriando" entre vocês.


O PASSAGEIRO

Quando o estranho chegou,
Mesmo amigável, pela sombra,
Confrontou-se com olhares de surpresa
E desconfiança.
Olhou em volta e pediu,
Com carteira na mão,
Na forma de aguardente,
O alívio da jornada.
Enfim, finda.
Nas mãos de um,
E no coração de outros, séculos de acolhimento.
O gato dormia no balcão
E as moscas faziam a festa da recepção.
O resto eram pedaços de deus
Dormindo a merecida jaca mole.

ZIG-ZAG

Sexta-feira
Dia de limpar,
De guardar lagartas
Na geladeira.
Dia de nascer e morrer,
Dia de unir e trair,
Dia de chegar e sumir,
Trocar lençóis e anzóis.
Para sempre, olhar o mar e calar-se.
Dia do sim e do não,
Das rimas pobres
Para tudo acabar em dissipação
E andar aos ziguezagues.

SOLITUDE

Há inesperados lugares repousantes. Um deles é um umbigo singular e plural, como ficam na frutificação das amoreiras. Dormir no umbigo de uma única amora é o melhor local, mudo e violeta, numa noite indefinível onde podemos habitar, antes do apodrecimento da fruta, antes do bico de um passarinho, um sono de formiga. Lá não somos amigos de ninguém, por falta de espaço. Basta a doçura daquele cobertor miúdo, constrito, restrito, onde não cabem telefones, chamados imprevistos e o vento repousa na sombra do chão tingido de nós mesmos.

O GRAMPO

Quando se pôs de pé, viu-se retido por um objeto sobre a mesa. Era um grampo de cabelos que lhe foram importantes por bons motivos. Circunstâncias fortuitas o levaram até ali, aquele ambiente desarrumado havia dias.
Se a casa foi abandonada, não havia razão para falta de asseio pessoal. Colocou-se sob o chuveiro, barbeou-se, vestiu-se em trajes limpos e apoderou-se do grampo. Saiu para a praça, naquela tarde ensolarada.
Sentiu-se, por alguns instantes, perdido. Havia poucas pessoas espalhadas em alguns bancos, sob as sombras dos flamboaiãs, floridos nessa época do ano. Caminhou até o extremo da quadra, até avistar o rio, outrora manchado de lembranças amargas, mas agora já limpo. Sua vida mudaria. Transfiguração.
Foi, em passos lentos, à ponte, debruçou-se sobre a murada e ficou contemplando as águas plácidas e verdes. Era um rio agradavelmente silencioso, margeado por vegetação densa, de tons múltiplos. Tomou a decisão de atirar o grampo nas águas; por que manter aquele incômodo no bolso? E o fez.

Deveria ter esperado a noite pesada e as ruas vazias para livrar-se do corpo que carregava outros grampos, mas não o fez. Deixou-o no porão da casa desarrumada. Saiu dali, tomou um taxi e dirigiu-se à rodoviária. Comprou passagem para o Rio e esperou duas horas para embarcar. Dessa vez, foi-se para nunca mais voltar, nem por imposição de inquérito policial. Algo muito improvável. Seria se não fosse. Foram demasiado nefastos os dias.
AMBULANTE

Quando ainda viva,
Preenchia seu vazio
Em busca de um lugar,
Nunca a seu alcance.
Depois morreu.
Foi quando encontrou:
O não-lugar,
Ao esvaziar-se de si.
Venceu.