NUNCA É "BEM ALI"
"O inimigo é nosso melhor professor". A origem da frase parece ser tibetana, a confiar num filme americano vagabundo a que assistia numa madrugada dessas. Bem, resolvi pensar, o que é um perigo. Vamos lá.
De que forma isso pode ser? Por suposto, revelando nossa vulnerabilidade.
Se desenvolvemos a consciência de nosso próprio limite, ainda assim, só nosso inimigo de fato é capaz de enxergar, em nós, a fragilidade de consciência. Em outras palavras, aquilo que restringe a consciência que pretende avistar o limite. O horizonte divisado é dimensionado de um ponto relativo. Há inumeráveis outros pontos. Nosso limite é sem tamanho, não-dimensionável. Professor nenhum ensina o que não sabemos, podemos ou queremos aprender, na incompletude do aprendizado.
A consciência do limite é passageira, provisória. O inimigo é nosso melhor alerta para a noção básica de que há um limite provável e de que ele não é um muro, mas o instável das possibilidades difusas, que se bifurcam ("plurifurcam") em complexidades crescentes. Fica, portanto, claro, subitamente, que o inimigo é o verdadeiro limite e, desse modo, podemos saber que sua existência é um bem. Por isso deve ser conhecido, preservado e respeitado.
O mal está, sem ter um lócus, sempre em outro lugar impermanente. Assim, determiná-lo, estabelecê-lo, estabilizá-lo e dar-lhe contornos nítidos é somente uma de tantas outras formas de nos iludirmos em conforto derrisório; ficamos na detenção de um, entre tantos outros, ponto de vista e de um, entre tantos outros, horizonte moral. Cegos e condenados à indignação constante.
A nós, cabe apenas conhecer o chão frágil sobre o qual devemos pisar com ampliada cautela. Modestos, discretos, humildes em nossa ignorância incontornável.
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
21 ACONSELHAMENTOS PARA UM OLIGARCA DE PRIMEIRA VIAGEM
1. Se queres, toma. Se fores tomar, toma logo.
2. Se for preciso a força, usa. E dá uma desaparecidazinha. É para o noticiário esfriar.
3. Mantém lugares-tenentes bem pagos.
4. Só volta bom tempo depois, o necessário, ciente da posse plena dos bens alheios. Rico o bastante para não deixar dúvidas e espalhar medo suficiente; o que compra subserviência e lealdade permanentes.
5. Não te faças político. Manipula pela sombra e compra o que sobrou. Os políticos são negociáveis no mercado de piolhos.
6. Compra legisladores e juristas de fancaria. Há de sobra. Estarás a salvo de amolações processuais. Serás então figura de respeito.
7. Associa-te ao santo do entorno e empenha teu séquito de bajuladores em vistosas obras de caridade. Terás a gratidão dos humildes e a inveja dos poderosos locais. Muita atenção agora. Chama alguns deles e ajuda necessitados em seu nome, discretamente. Ficarão agradecidos e envaidecidos em sua sórdida hipocrisia.
8. Quebra a espinha de teus inimigos pela faca ou pelo suborno. Interpostas pessoas - policiais são boa escolha. Obterás o silêncio e a vigilância da cumplicidade.
9. Parece bobagem, mas não é. Não sentes; altaneiro e ativo à luz de todo o dia.
10. Cuida da aparência sempre: testa larga, lisa e lustrosa; fios capilares alinhados a cola, tingidos se preciso for. Roupas caras, imaculadamente limpas e engomadas. Calçados brilhosos; postura ereta; mãos macias sobre as cabecinhas das crianças. Cuida dos dentes. Riso largo sobre a face lavada de inocência. Tu estarás por cima sem, no entanto, pisar. Parece bobagem, mas não é.
11. Recebe e não sejas recebido. Atende e não sejas atendido.
12. Doa e não reveles o preço. A paga virá sem que tenhas sequer cobrado. Existem lambe-esporas a mancheias.
13. Mostra ou inventa o passado de pobreza que soubeste superar. Uma vida de labuta incessante até a vitória presente. Do nada à glória refinada pela simplicidade que se apresenta. Um coração que não humilha, mas que aquece e protege.
14. Aloca parentes e afilhados em postos chaves da administração pública. Usa um artifício: instala os parentes e afilhados de teus amigos; estes saberão alocar os teus.
15. Lembra: aliado nunca é de ocasião; este pode trair-te. Aliado é aquele de sangue, de uma vida. O preço da traição é a morte com ocultação de cadáver.
16. Não te preocupes em pagar tuas pendências com o poder público. As dívidas que tiveres acabarão esquecidas ou anistiadas. Quanto maior o débito, maior o perdão de reconhecimento.
17. Mente sistemática e coerentemente; não desmintas; põe-te atento aos detalhes. Guarda boa advocacia na algibeira.
18. Não te metas em escândalos sexuais. Faze tuas farras na Europa. Há bons profissionais no ramo. Aparenta sempre honrar a família e os bons costumes.
19. Não deixes rastros. Aí está o segredo e a ciência. Terceiriza tudo.
20. Cobre-te com o véu da honradez. Protege teus canalhas de estimação. Escreve sonetos.
21. Segue disciplinadamente tais conselhos, até o fim de teus dias ativos. No Brasil, as dinastias costumam durar muito. Vale a pena.
1. Se queres, toma. Se fores tomar, toma logo.
2. Se for preciso a força, usa. E dá uma desaparecidazinha. É para o noticiário esfriar.
3. Mantém lugares-tenentes bem pagos.
4. Só volta bom tempo depois, o necessário, ciente da posse plena dos bens alheios. Rico o bastante para não deixar dúvidas e espalhar medo suficiente; o que compra subserviência e lealdade permanentes.
5. Não te faças político. Manipula pela sombra e compra o que sobrou. Os políticos são negociáveis no mercado de piolhos.
6. Compra legisladores e juristas de fancaria. Há de sobra. Estarás a salvo de amolações processuais. Serás então figura de respeito.
7. Associa-te ao santo do entorno e empenha teu séquito de bajuladores em vistosas obras de caridade. Terás a gratidão dos humildes e a inveja dos poderosos locais. Muita atenção agora. Chama alguns deles e ajuda necessitados em seu nome, discretamente. Ficarão agradecidos e envaidecidos em sua sórdida hipocrisia.
8. Quebra a espinha de teus inimigos pela faca ou pelo suborno. Interpostas pessoas - policiais são boa escolha. Obterás o silêncio e a vigilância da cumplicidade.
9. Parece bobagem, mas não é. Não sentes; altaneiro e ativo à luz de todo o dia.
10. Cuida da aparência sempre: testa larga, lisa e lustrosa; fios capilares alinhados a cola, tingidos se preciso for. Roupas caras, imaculadamente limpas e engomadas. Calçados brilhosos; postura ereta; mãos macias sobre as cabecinhas das crianças. Cuida dos dentes. Riso largo sobre a face lavada de inocência. Tu estarás por cima sem, no entanto, pisar. Parece bobagem, mas não é.
11. Recebe e não sejas recebido. Atende e não sejas atendido.
12. Doa e não reveles o preço. A paga virá sem que tenhas sequer cobrado. Existem lambe-esporas a mancheias.
13. Mostra ou inventa o passado de pobreza que soubeste superar. Uma vida de labuta incessante até a vitória presente. Do nada à glória refinada pela simplicidade que se apresenta. Um coração que não humilha, mas que aquece e protege.
14. Aloca parentes e afilhados em postos chaves da administração pública. Usa um artifício: instala os parentes e afilhados de teus amigos; estes saberão alocar os teus.
15. Lembra: aliado nunca é de ocasião; este pode trair-te. Aliado é aquele de sangue, de uma vida. O preço da traição é a morte com ocultação de cadáver.
16. Não te preocupes em pagar tuas pendências com o poder público. As dívidas que tiveres acabarão esquecidas ou anistiadas. Quanto maior o débito, maior o perdão de reconhecimento.
17. Mente sistemática e coerentemente; não desmintas; põe-te atento aos detalhes. Guarda boa advocacia na algibeira.
18. Não te metas em escândalos sexuais. Faze tuas farras na Europa. Há bons profissionais no ramo. Aparenta sempre honrar a família e os bons costumes.
19. Não deixes rastros. Aí está o segredo e a ciência. Terceiriza tudo.
20. Cobre-te com o véu da honradez. Protege teus canalhas de estimação. Escreve sonetos.
21. Segue disciplinadamente tais conselhos, até o fim de teus dias ativos. No Brasil, as dinastias costumam durar muito. Vale a pena.
UM POUCO FORA DE ÉPOCA: RARGHP
Há muito, muito tempo, na música erudita barroca, foi criado o estilo recitativo. Os instrumentos eram mero suporte. Muito delicado então. Portanto, não há criatividade nenhuma nessa "coisa" do "povo do boné" - a geração "porra, caralho!" - que, em música popular de hoje, se chama RAP (de origem norte-americana, vazada aqui, na terra das araras, bundas, praias, coqueiros e bananeiras, como praga). Atual apenas em parte, na brutalidade. Falar em criação é sempre problemático.
Sei os motivos e a sociologia da “coisa”. Puro clichê. Por que não ouvir Avellino Monteverde? Por que só fui me lembrar disso hoje, nesta exata manhã de agourento domingo, de sonolência perdida?
Já sei: é o maldito vizinho ouvindo seu rap nas alturas, desconsiderando qualquer remota possibilidade de que existam outros mamíferos na área. Entendeu? É ele e mais ninguém. "Existirem outros? Pra quê?! Por que não dormem até morrer? Deveria chover gasolina sobre essa gente que não me deixa ouvir o rap. Só pra sentirem o cheiro".
Apesar de estar envelhecendo bem (contente por ter vivido o que vivi, sem desejar nada de volta, sem ressentimentos – de algumas vergonhas ninguém escapa), estou resignado a morrer de tédio em áridas paragens.
A este domingo seguem outros, outras manhãs. O mesmo vizinho. Ele não permanecerá. Vou passeando sem pressa, ainda que pleno de ira, e também esta não permanecerá. Assim desejo e espero. Quem sabe o que nos reservam os inescapáveis domingos, os malditos novos vizinhos?
Há muito, muito tempo, na música erudita barroca, foi criado o estilo recitativo. Os instrumentos eram mero suporte. Muito delicado então. Portanto, não há criatividade nenhuma nessa "coisa" do "povo do boné" - a geração "porra, caralho!" - que, em música popular de hoje, se chama RAP (de origem norte-americana, vazada aqui, na terra das araras, bundas, praias, coqueiros e bananeiras, como praga). Atual apenas em parte, na brutalidade. Falar em criação é sempre problemático.
Sei os motivos e a sociologia da “coisa”. Puro clichê. Por que não ouvir Avellino Monteverde? Por que só fui me lembrar disso hoje, nesta exata manhã de agourento domingo, de sonolência perdida?
Já sei: é o maldito vizinho ouvindo seu rap nas alturas, desconsiderando qualquer remota possibilidade de que existam outros mamíferos na área. Entendeu? É ele e mais ninguém. "Existirem outros? Pra quê?! Por que não dormem até morrer? Deveria chover gasolina sobre essa gente que não me deixa ouvir o rap. Só pra sentirem o cheiro".
Apesar de estar envelhecendo bem (contente por ter vivido o que vivi, sem desejar nada de volta, sem ressentimentos – de algumas vergonhas ninguém escapa), estou resignado a morrer de tédio em áridas paragens.
A este domingo seguem outros, outras manhãs. O mesmo vizinho. Ele não permanecerá. Vou passeando sem pressa, ainda que pleno de ira, e também esta não permanecerá. Assim desejo e espero. Quem sabe o que nos reservam os inescapáveis domingos, os malditos novos vizinhos?
DENTRO DE UM LIVRO
Num país em que a urbanização se deu veloz e aos trancos, com boa parte da população pobre e de pouca instrução, só poderíamos, hoje, assistir a um quase nada de civilidade, a uma barbárie estridente. Pouco importa se agora é chamada de classe C e traga no sovaco um diplomazinho qualquer, financiado pelo Pro-Uni, de uma Unilixo de esquina. Aqui não se protesta, se depreda. Em sentido metafórico (quem tem dinheiro) e, em sentido literal (quem não tem nada - um tênis vagabundo, uma bermuda qualquer, uma camiseta, um boné e muita raiva). A luta nunca é política, é sangrenta de variado modo. De quem é a responsabilidade? De todos e de ninguém. Quem mesmo é que está ligando? Muita Casas Bahia pra todos, muita dívida, para ficar num só exemplo.
Chuto e generalizo mais um pouco: é próprio de certo brasileiro (cada vez mais vulgar) agir por impulso, em busca do fácil, como se fosse avesso à antecipação, ao cálculo, ao planejamento. Veja o trânsito violento, os estádios violentos, os bares violentos, as escolas violentas, as manifestações populares violentas, o lixo nas ruas, o homicídio por motivos fúteis...
Vejo, também aí (no impulso), uma das origens da vasta tendência ao ilícito, ao drible da lei, à busca de brechas. Há, é claro, de se considerar a fúria legiferante dos parlamentares (que não entendem nada) produzindo as leis que não pegam, o difícil para a venda do fácil, a norma sem a devida fiscalização. A pose em detrimento do ato. Uma coisa alimentando a outra. Perante a lei, definitivamente, não somos uma sociedade de iguais. Basta ver o foro privilegiado.
Assim, é da ordem natural brasileira vencer, de pronto, aos saltos e por contornos, os obstáculos que a república exige. Que república, homem branco?! No dizer de Roberto Romano, o adequado é uma federação de oligarquias.
Não sou eu quem diz: como não somos uma sociedade contratual, mas formada por afinidades (de todo tipo) - compadrio, parental, afetiva... "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei"), a lei, a civilidade, a educação nos modos são um estorvo. "...meu pirão primeiro", "os outros que se danem". "O que é público é de ninguém". "Se não tenho ainda, tomo já" (o jovem delinquente pobre); "Está difícil, a gente mela ou vai ao limite da irresponsabilidade" (o adulto delinquente poderoso). "Não negocio (coisa de fresco), resolvo na porrada, Mané". “Prendo e arrebento”. E isso se traduz na linguagem chula com que as pessoas se tratam no cotidiano. Num simples jogo de quadra, amistoso (uma brincadeira), entre condôminos de um mesmo edifício, o que você mais se ouve é: "Porra! Caralho! Vai tomar no cu, Filho da Puta!". Um horror familiar.
O Brasil é, hoje, um país de despreparados (de ponta a ponta, vertical e horizontalmente), do atropelo, da brutalidade crescente (que, a rigor, é muito antiga - não sai da paisagem). Conseguiram avacalhar de fato. Há mais de 40 anos, quando resolvi trabalhar com educação (a militância política sempre me pareceu burra, autoritária e enfadonha), era jovem e tinha alguma esperança. Desde então, o centralismo ignorante e aloprado dos órgãos responsáveis pelas políticas educacionais só vem tornando as escolas vagabundas (não falo disso, me adoece). Ver um(a) brasileirinho(a) qualquer andando com celular pra lá e pra cá não me parece progresso, mas, sim, um disparate. A conectividade idiota, porque inútil, frívola.
Grosso modo, não posso gostar daqui. É um país sombrio na alma, e ensolarado na pele. A propalada alegria do brasileiro não é cotidiana, é explosiva, convulsiva e boçal. Não é possível perceber que o brasileiro é, no fundo, um povo triste? É uma pena que ainda esteja assim. Vai piorar.
A verdade é que preferiria estar em lugar nenhum, em país nenhum. De portas e janelas fechadas, dentro de um livro. Bem, já acordo quando os outros vão dormir. Pela manhã, quando chego ao trabalho, já estive em atividade por 7 horas. Os outros escravos estão começando.
Durmo pouco. Tenho, portanto, voluntariamente, horários extravagantes. Não vejo televisão, não vou mais ao cinema, não saio nunca à noite, não uso celular, não participo de redes sociais; mais de três, pra mim, é multidão; não tuito, não gosto de futebol, odeio baladas e baladeiros, não gosto de Carnaval, detesto escolas de samba e samba-enredo, não gosto de música sertaneja (ou o que isso significar), não bebo cerveja, não entro em centro de compras, não gosto de automóveis, não gosto de pinga, não canto o Hino Nacional... Não sei que tipo de brasileiro sou; nem sei o que estou fazendo aqui.
Sou antiquado e deslocado, para o meu próprio bem. O contemporâneo me assusta e me dá medo. A juventude me entristece e me intoxica de desânimo, tal a sua ignorância espalhafatosa. Amo envelhecer. Não quero esperar pra ver. “Não vejo a hora”. Tudo há em demasia. Não vai dar certo, isso vai acabar mal. Não posso conviver com pessoas que repelem o silêncio, o pausado, o pouco, o modesto, o recolhido. Tudo tem que ser em grande quantidade, pra fora e alto, muito alto. Pra prevalecer de qualquer forma.
Do Brasil, gosto apenas da língua e da comida, já gostei da música e das pessoas (que vão, pouco a pouco, desaparecendo). Restam algumas poucas ainda, pra meu consolo. Sair para a rua, com o fito de fazer qualquer coisinha, é um martírio: pedestres em grupo que me jogam para o asfalto; ciclistas do bem que me atropelam, ruído ensurdecedor dos automóveis, motoristas que deveriam estar na cadeia... Para o resto, dou as costas. Cada vez mais. Cada vez mais, dentro de um livro que me agrade. Na solidão e no silêncio de minha casa. Um paraíso quando um brasileiro idiota não resolve ligar o som para ouvir pancadão e arrotar palavrões. Cada vez mais invasivos e em maior número. Basta conceder-lhes crédito e nenhuma educação. Chamam a isso inclusão. Entendi: incluem muitos de qualquer jeito para excluir os que ainda restam. Estes não perceberam ainda que já deveriam ter partido. Eu, como sou do contra, parti pra dentro.
Num país em que a urbanização se deu veloz e aos trancos, com boa parte da população pobre e de pouca instrução, só poderíamos, hoje, assistir a um quase nada de civilidade, a uma barbárie estridente. Pouco importa se agora é chamada de classe C e traga no sovaco um diplomazinho qualquer, financiado pelo Pro-Uni, de uma Unilixo de esquina. Aqui não se protesta, se depreda. Em sentido metafórico (quem tem dinheiro) e, em sentido literal (quem não tem nada - um tênis vagabundo, uma bermuda qualquer, uma camiseta, um boné e muita raiva). A luta nunca é política, é sangrenta de variado modo. De quem é a responsabilidade? De todos e de ninguém. Quem mesmo é que está ligando? Muita Casas Bahia pra todos, muita dívida, para ficar num só exemplo.
Chuto e generalizo mais um pouco: é próprio de certo brasileiro (cada vez mais vulgar) agir por impulso, em busca do fácil, como se fosse avesso à antecipação, ao cálculo, ao planejamento. Veja o trânsito violento, os estádios violentos, os bares violentos, as escolas violentas, as manifestações populares violentas, o lixo nas ruas, o homicídio por motivos fúteis...
Vejo, também aí (no impulso), uma das origens da vasta tendência ao ilícito, ao drible da lei, à busca de brechas. Há, é claro, de se considerar a fúria legiferante dos parlamentares (que não entendem nada) produzindo as leis que não pegam, o difícil para a venda do fácil, a norma sem a devida fiscalização. A pose em detrimento do ato. Uma coisa alimentando a outra. Perante a lei, definitivamente, não somos uma sociedade de iguais. Basta ver o foro privilegiado.
Assim, é da ordem natural brasileira vencer, de pronto, aos saltos e por contornos, os obstáculos que a república exige. Que república, homem branco?! No dizer de Roberto Romano, o adequado é uma federação de oligarquias.
Não sou eu quem diz: como não somos uma sociedade contratual, mas formada por afinidades (de todo tipo) - compadrio, parental, afetiva... "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei"), a lei, a civilidade, a educação nos modos são um estorvo. "...meu pirão primeiro", "os outros que se danem". "O que é público é de ninguém". "Se não tenho ainda, tomo já" (o jovem delinquente pobre); "Está difícil, a gente mela ou vai ao limite da irresponsabilidade" (o adulto delinquente poderoso). "Não negocio (coisa de fresco), resolvo na porrada, Mané". “Prendo e arrebento”. E isso se traduz na linguagem chula com que as pessoas se tratam no cotidiano. Num simples jogo de quadra, amistoso (uma brincadeira), entre condôminos de um mesmo edifício, o que você mais se ouve é: "Porra! Caralho! Vai tomar no cu, Filho da Puta!". Um horror familiar.
O Brasil é, hoje, um país de despreparados (de ponta a ponta, vertical e horizontalmente), do atropelo, da brutalidade crescente (que, a rigor, é muito antiga - não sai da paisagem). Conseguiram avacalhar de fato. Há mais de 40 anos, quando resolvi trabalhar com educação (a militância política sempre me pareceu burra, autoritária e enfadonha), era jovem e tinha alguma esperança. Desde então, o centralismo ignorante e aloprado dos órgãos responsáveis pelas políticas educacionais só vem tornando as escolas vagabundas (não falo disso, me adoece). Ver um(a) brasileirinho(a) qualquer andando com celular pra lá e pra cá não me parece progresso, mas, sim, um disparate. A conectividade idiota, porque inútil, frívola.
Grosso modo, não posso gostar daqui. É um país sombrio na alma, e ensolarado na pele. A propalada alegria do brasileiro não é cotidiana, é explosiva, convulsiva e boçal. Não é possível perceber que o brasileiro é, no fundo, um povo triste? É uma pena que ainda esteja assim. Vai piorar.
A verdade é que preferiria estar em lugar nenhum, em país nenhum. De portas e janelas fechadas, dentro de um livro. Bem, já acordo quando os outros vão dormir. Pela manhã, quando chego ao trabalho, já estive em atividade por 7 horas. Os outros escravos estão começando.
Durmo pouco. Tenho, portanto, voluntariamente, horários extravagantes. Não vejo televisão, não vou mais ao cinema, não saio nunca à noite, não uso celular, não participo de redes sociais; mais de três, pra mim, é multidão; não tuito, não gosto de futebol, odeio baladas e baladeiros, não gosto de Carnaval, detesto escolas de samba e samba-enredo, não gosto de música sertaneja (ou o que isso significar), não bebo cerveja, não entro em centro de compras, não gosto de automóveis, não gosto de pinga, não canto o Hino Nacional... Não sei que tipo de brasileiro sou; nem sei o que estou fazendo aqui.
Sou antiquado e deslocado, para o meu próprio bem. O contemporâneo me assusta e me dá medo. A juventude me entristece e me intoxica de desânimo, tal a sua ignorância espalhafatosa. Amo envelhecer. Não quero esperar pra ver. “Não vejo a hora”. Tudo há em demasia. Não vai dar certo, isso vai acabar mal. Não posso conviver com pessoas que repelem o silêncio, o pausado, o pouco, o modesto, o recolhido. Tudo tem que ser em grande quantidade, pra fora e alto, muito alto. Pra prevalecer de qualquer forma.
Do Brasil, gosto apenas da língua e da comida, já gostei da música e das pessoas (que vão, pouco a pouco, desaparecendo). Restam algumas poucas ainda, pra meu consolo. Sair para a rua, com o fito de fazer qualquer coisinha, é um martírio: pedestres em grupo que me jogam para o asfalto; ciclistas do bem que me atropelam, ruído ensurdecedor dos automóveis, motoristas que deveriam estar na cadeia... Para o resto, dou as costas. Cada vez mais. Cada vez mais, dentro de um livro que me agrade. Na solidão e no silêncio de minha casa. Um paraíso quando um brasileiro idiota não resolve ligar o som para ouvir pancadão e arrotar palavrões. Cada vez mais invasivos e em maior número. Basta conceder-lhes crédito e nenhuma educação. Chamam a isso inclusão. Entendi: incluem muitos de qualquer jeito para excluir os que ainda restam. Estes não perceberam ainda que já deveriam ter partido. Eu, como sou do contra, parti pra dentro.
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