quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

NUNCA É "BEM ALI"


"O inimigo é nosso melhor professor". A origem da frase parece ser tibetana, a confiar num filme americano vagabundo a que assistia numa madrugada dessas. Bem, resolvi pensar, o que é um perigo. Vamos lá.

De que forma isso pode ser? Por suposto, revelando nossa vulnerabilidade.

Se desenvolvemos a consciência de nosso próprio limite, ainda assim, só nosso inimigo de fato é capaz de enxergar, em nós, a fragilidade de consciência. Em outras palavras, aquilo que restringe a consciência que pretende avistar o limite. O horizonte divisado é dimensionado de um ponto relativo. Há inumeráveis outros pontos. Nosso limite é sem tamanho, não-dimensionável. Professor nenhum ensina o que não sabemos, podemos ou queremos aprender, na incompletude do aprendizado.

A consciência do limite é passageira, provisória. O inimigo é nosso melhor alerta para a noção básica de que há um limite provável e de que ele não é um muro, mas o instável das possibilidades difusas, que se bifurcam ("plurifurcam") em complexidades crescentes. Fica, portanto, claro, subitamente, que o inimigo é o verdadeiro limite e, desse modo, podemos saber que sua existência é um bem. Por isso deve ser conhecido, preservado e respeitado.

O mal está, sem ter um lócus, sempre em outro lugar impermanente. Assim, determiná-lo, estabelecê-lo, estabilizá-lo e dar-lhe contornos nítidos é somente uma de tantas outras formas de nos iludirmos em conforto derrisório; ficamos na detenção de um, entre tantos outros, ponto de vista e de um, entre tantos outros, horizonte moral. Cegos e condenados à indignação constante.

A nós, cabe apenas conhecer o chão frágil sobre o qual devemos pisar com ampliada cautela. Modestos, discretos, humildes em nossa ignorância incontornável.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

21 ACONSELHAMENTOS PARA UM OLIGARCA DE PRIMEIRA VIAGEM

1. Se queres, toma. Se fores tomar, toma logo.

2. Se for preciso a força, usa. E dá uma desaparecidazinha. É para o noticiário esfriar.

3. Mantém lugares-tenentes bem pagos.

4. Só volta bom tempo depois, o necessário, ciente da posse plena dos bens alheios. Rico o bastante para não deixar dúvidas e espalhar medo suficiente; o que compra subserviência e lealdade permanentes.

5. Não te faças político. Manipula pela sombra e compra o que sobrou. Os políticos são negociáveis no mercado de piolhos.

6. Compra legisladores e juristas de fancaria. Há de sobra. Estarás a salvo de amolações processuais. Serás então figura de respeito.

7. Associa-te ao santo do entorno e empenha teu séquito de bajuladores em vistosas obras de caridade. Terás a gratidão dos humildes e a inveja dos poderosos locais. Muita atenção agora. Chama alguns deles e ajuda necessitados em seu nome, discretamente. Ficarão agradecidos e envaidecidos em sua sórdida hipocrisia.

8. Quebra a espinha de teus inimigos pela faca ou pelo suborno. Interpostas pessoas - policiais são boa escolha. Obterás o silêncio e a vigilância da cumplicidade.

9. Parece bobagem, mas não é. Não sentes; altaneiro e ativo à luz de todo o dia.

10. Cuida da aparência sempre: testa larga, lisa e lustrosa; fios capilares alinhados a cola, tingidos se preciso for. Roupas caras, imaculadamente limpas e engomadas. Calçados brilhosos; postura ereta; mãos macias sobre as cabecinhas das crianças. Cuida dos dentes. Riso largo sobre a face lavada de inocência. Tu estarás por cima sem, no entanto, pisar. Parece bobagem, mas não é.

11. Recebe e não sejas recebido. Atende e não sejas atendido.

12. Doa e não reveles o preço. A paga virá sem que tenhas sequer cobrado. Existem lambe-esporas a mancheias.

13. Mostra ou inventa o passado de pobreza que soubeste superar. Uma vida de labuta incessante até a vitória presente. Do nada à glória refinada pela simplicidade que se apresenta. Um coração que não humilha, mas que aquece e protege.

14. Aloca parentes e afilhados em postos chaves da administração pública. Usa um artifício: instala os parentes e afilhados de teus amigos; estes saberão alocar os teus.

15. Lembra: aliado nunca é de ocasião; este pode trair-te. Aliado é aquele de sangue, de uma vida. O preço da traição é a morte com ocultação de cadáver.

16. Não te preocupes em pagar tuas pendências com o poder público. As dívidas que tiveres acabarão esquecidas ou anistiadas. Quanto maior o débito, maior o perdão de reconhecimento.

17. Mente sistemática e coerentemente; não desmintas; põe-te atento aos detalhes. Guarda boa advocacia na algibeira.

18. Não te metas em escândalos sexuais. Faze tuas farras na Europa. Há bons profissionais no ramo. Aparenta sempre honrar a família e os bons costumes.

19. Não deixes rastros. Aí está o segredo e a ciência. Terceiriza tudo.


20. Cobre-te com o véu da honradez. Protege teus canalhas de estimação. Escreve sonetos.

21. Segue disciplinadamente tais conselhos, até o fim de teus dias ativos. No Brasil, as dinastias costumam durar muito. Vale a pena.
UM POUCO FORA DE ÉPOCA: RARGHP

Há muito, muito tempo, na música erudita barroca, foi criado o estilo recitativo. Os instrumentos eram mero suporte. Muito delicado então. Portanto, não há criatividade nenhuma nessa "coisa" do "povo do boné" - a geração "porra, caralho!" - que, em música popular de hoje, se chama RAP (de origem norte-americana, vazada aqui, na terra das araras, bundas, praias, coqueiros e bananeiras, como praga). Atual apenas em parte, na brutalidade. Falar em criação é sempre problemático.

Sei os motivos e a sociologia da “coisa”. Puro clichê. Por que não ouvir Avellino Monteverde? Por que só fui me lembrar disso hoje, nesta exata manhã de agourento domingo, de sonolência perdida?

Já sei: é o maldito vizinho ouvindo seu rap nas alturas, desconsiderando qualquer remota possibilidade de que existam outros mamíferos na área. Entendeu? É ele e mais ninguém. "Existirem outros? Pra quê?! Por que não dormem até morrer? Deveria chover gasolina sobre essa gente que não me deixa ouvir o rap. Só pra sentirem o cheiro".

Apesar de estar envelhecendo bem (contente por ter vivido o que vivi, sem desejar nada de volta, sem ressentimentos – de algumas vergonhas ninguém escapa), estou resignado a morrer de tédio em áridas paragens.

A este domingo seguem outros, outras manhãs. O mesmo vizinho. Ele não permanecerá. Vou passeando sem pressa, ainda que pleno de ira, e também esta não permanecerá. Assim desejo e espero. Quem sabe o que nos reservam os inescapáveis domingos, os malditos novos vizinhos?
DENTRO DE UM LIVRO

Num país em que a urbanização se deu veloz e aos trancos, com boa parte da população pobre e de pouca instrução, só poderíamos, hoje, assistir a um quase nada de civilidade, a uma barbárie estridente. Pouco importa se agora é chamada de classe C e traga no sovaco um diplomazinho qualquer, financiado pelo Pro-Uni, de uma Unilixo de esquina. Aqui não se protesta, se depreda. Em sentido metafórico (quem tem dinheiro) e, em sentido literal (quem não tem nada - um tênis vagabundo, uma bermuda qualquer, uma camiseta, um boné e muita raiva). A luta nunca é política, é sangrenta de variado modo. De quem é a responsabilidade? De todos e de ninguém. Quem mesmo é que está ligando? Muita Casas Bahia pra todos, muita dívida, para ficar num só exemplo.

Chuto e generalizo mais um pouco: é próprio de certo brasileiro (cada vez mais vulgar) agir por impulso, em busca do fácil, como se fosse avesso à antecipação, ao cálculo, ao planejamento. Veja o trânsito violento, os estádios violentos, os bares violentos, as escolas violentas, as manifestações populares violentas, o lixo nas ruas, o homicídio por motivos fúteis...

Vejo, também aí (no impulso), uma das origens da vasta tendência ao ilícito, ao drible da lei, à busca de brechas. Há, é claro, de se considerar a fúria legiferante dos parlamentares (que não entendem nada) produzindo as leis que não pegam, o difícil para a venda do fácil, a norma sem a devida fiscalização. A pose em detrimento do ato. Uma coisa alimentando a outra. Perante a lei, definitivamente, não somos uma sociedade de iguais. Basta ver o foro privilegiado.

Assim, é da ordem natural brasileira vencer, de pronto, aos saltos e por contornos, os obstáculos que a república exige. Que república, homem branco?! No dizer de Roberto Romano, o adequado é uma federação de oligarquias.

Não sou eu quem diz: como não somos uma sociedade contratual, mas formada por afinidades (de todo tipo) - compadrio, parental, afetiva... "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei"), a lei, a civilidade, a educação nos modos são um estorvo. "...meu pirão primeiro", "os outros que se danem". "O que é público é de ninguém". "Se não tenho ainda, tomo já" (o jovem delinquente pobre); "Está difícil, a gente mela ou vai ao limite da irresponsabilidade" (o adulto delinquente poderoso). "Não negocio (coisa de fresco), resolvo na porrada, Mané". “Prendo e arrebento”. E isso se traduz na linguagem chula com que as pessoas se tratam no cotidiano. Num simples jogo de quadra, amistoso (uma brincadeira), entre condôminos de um mesmo edifício, o que você mais se ouve é: "Porra! Caralho! Vai tomar no cu, Filho da Puta!". Um horror familiar.

O Brasil é, hoje, um país de despreparados (de ponta a ponta, vertical e horizontalmente), do atropelo, da brutalidade crescente (que, a rigor, é muito antiga - não sai da paisagem). Conseguiram avacalhar de fato. Há mais de 40 anos, quando resolvi trabalhar com educação (a militância política sempre me pareceu burra, autoritária e enfadonha), era jovem e tinha alguma esperança. Desde então, o centralismo ignorante e aloprado dos órgãos responsáveis pelas políticas educacionais só vem tornando as escolas vagabundas (não falo disso, me adoece). Ver um(a) brasileirinho(a) qualquer andando com celular pra lá e pra cá não me parece progresso, mas, sim, um disparate. A conectividade idiota, porque inútil, frívola.

Grosso modo
, não posso gostar daqui. É um país sombrio na alma, e ensolarado na pele. A propalada alegria do brasileiro não é cotidiana, é explosiva, convulsiva e boçal. Não é possível perceber que o brasileiro é, no fundo, um povo triste? É uma pena que ainda esteja assim. Vai piorar.

A verdade é que preferiria estar em lugar nenhum, em país nenhum. De portas e janelas fechadas, dentro de um livro. Bem, já acordo quando os outros vão dormir. Pela manhã, quando chego ao trabalho, já estive em atividade por 7 horas. Os outros escravos estão começando.

Durmo pouco. Tenho, portanto, voluntariamente, horários extravagantes. Não vejo televisão, não vou mais ao cinema, não saio nunca à noite, não uso celular, não participo de redes sociais; mais de três, pra mim, é multidão; não tuito, não gosto de futebol, odeio baladas e baladeiros, não gosto de Carnaval, detesto escolas de samba e samba-enredo, não gosto de música sertaneja (ou o que isso significar), não bebo cerveja, não entro em centro de compras, não gosto de automóveis, não gosto de pinga, não canto o Hino Nacional... Não sei que tipo de brasileiro sou; nem sei o que estou fazendo aqui.

Sou antiquado e deslocado, para o meu próprio bem. O contemporâneo me assusta e me dá medo. A juventude me entristece e me intoxica de desânimo, tal a sua ignorância espalhafatosa. Amo envelhecer. Não quero esperar pra ver. “Não vejo a hora”. Tudo há em demasia. Não vai dar certo, isso vai acabar mal. Não posso conviver com pessoas que repelem o silêncio, o pausado, o pouco, o modesto, o recolhido. Tudo tem que ser em grande quantidade, pra fora e alto, muito alto. Pra prevalecer de qualquer forma.

Do Brasil, gosto apenas da língua e da comida, já gostei da música e das pessoas (que vão, pouco a pouco, desaparecendo). Restam algumas poucas ainda, pra meu consolo. Sair para a rua, com o fito de fazer qualquer coisinha, é um martírio: pedestres em grupo que me jogam para o asfalto; ciclistas do bem que me atropelam, ruído ensurdecedor dos automóveis, motoristas que deveriam estar na cadeia... Para o resto, dou as costas. Cada vez mais. Cada vez mais, dentro de um livro que me agrade. Na solidão e no silêncio de minha casa. Um paraíso quando um brasileiro idiota não resolve ligar o som para ouvir pancadão e arrotar palavrões. Cada vez mais invasivos e em maior número. Basta conceder-lhes crédito e nenhuma educação. Chamam a isso inclusão. Entendi: incluem muitos de qualquer jeito para excluir os que ainda restam. Estes não perceberam ainda que já deveriam ter partido. Eu, como sou do contra, parti pra dentro.