quinta-feira, 14 de junho de 2012

SOBRE A ARTE DE MILTON JOSÉ DE ALMEIDA

Suas imagens, sempre fortes no impacto inicial, eram, para mim, aos poucos, diáfanas e evanescentes, à beira da abstração. Antes que escapassem de nossa retina, dava-nos uma vaga referência de realidade, e, então desidratadas, partiam levadas pelo vento de sua beleza – esta que não mais nos abandonará. Imagens para serem vistas ao som de “In the Landscape” de John Cage. Delicadas como o artista no trato pessoal, na convivência.

Por que, ali em cima, verbos no pretérito? Apenas como homenagem e notificação de sua morte recente. Quem o conheceu sabe a que me refiro. Soube tardiamente de sua repentina partida. Estranhava o desaparecimento de seus e-mails. Perdi contato, que vivia em Campinas. Visitei-o por lá duas vezes. Morando sempre só e lecionando na Unicamp. Homem cético, de língua ferina, inteligência aguda como sua pena. E suprema cortesia.

Ficam, para mim, pelas paredes de minha casa, alguns de seus belos quadros e, nas estantes, alguns de seus textos e um livro: Cinema, arte da memória. E a lembrança de um amigo querido. Disto não posso me esquecer: era um excelente padeiro entre tantas outras excelências.

São Paulo, maio de 2012
SAÚDE

Muitos médicos e paranóicos de consultório parecem ainda não saber que o corpo humano é vulnerável. Suas ações e preocupações têm, como horizonte, eliminar a vulnerabilidade de toda a população.

Os maníacos por saúde (inclua aí os antigos hipocondríacos. Lembra deles?) passaram a viver como se estivessem sob permanente ameaça e iminente desastre. Em vez de lazer e prazer, ginástica; em vez das delícias da mesa, a refeição administrada; em vez do sexo solto, a expectativa do desempenho hiperdimensionado; em vez do silêncio e da reflexão, a constante e doente conectividade digital.

Em busca da vida saudável, condenaram-se à patologia antecipada e medicalizam o que veem pela frente. Como soldados que já não conseguem estar sem a batalha sangrenta. São pessoas muito tristes e não sabem. Parecem felizes e satisfeitos. Por que não se conformam logo que vão morrer, de um modo ou de outro, como qualquer ser vivo? A graça está em não saber quando.

Cuidado! Mordem e são perigosos.

maio de 2012
DE QUADROS E RIOS

Uma pintura, um desenho, à medida que o tempo passa, vão se tornando vestígios daqueles de nosso primeiro olhar. Mas há algo curioso: ali na parede, são sempre os mesmos - nós é que mudamos. A cada novo olhar, acomodam-se a nosso "novo" íntimo. De forma que, embora os mesmos, se transfiguram em corpos estranhos a pedir licença para entrar em nosso "aposento" pessoal. São "novos", porque são sempre os mesmos. Como os rios que nos tangenciam.

Bastante diferentes daqueles em que mergulhamos. Estes tomam posse de nós para sempre. Não ficam ali na parede. Já não pedem licença - a contrapartida por termos invadido suas águas. Destes, o meu foi o Jequiriçá no recôncavo baiano, de cujas águas nunca me desvencilhei, preso por um liame de felicidade que me fez um "arrastado" e nunca um falcão em voo livre nos céus das planícies.

maio de 2012
PUTREFAÇÃO

É lamentável, mas o que fazer diante do trator avassalador dessa turma criptofascista, a que propala a toda hora, pelos vinte ventos, a emergência da “qualidade de vida” e da “autoestima”, com suas roupinhas de ginástica e comidinhas orgânicas, manada que rouba o sossego dos parques? Arautos neuróticos da instrumentalização de nossos corpos falíveis.

Pregam, na verdade, a necessidade de um escravo melhor nas atividades de produção: mais durável, produtivo, sadio e eficiente – eles próprios. Mas não sabem disso; dizem-se “pela vida”, “do bem”. É melhor não contrariar. Morrem atropelados na avenida Paulista com suas bikes de US$ 5.000. São burros, não sabem por onde andam. Soldados da governança corporativa. Essa praga do apocalipse. Essa turma faz parte de um grupo maior que chamo aqui de instrumentalizadores. Têm como herói Steve Jobs, porque este fez muito dinheiro. Babam com o “bom” sucesso e, claro, porque tornou-se célebre embora fosse um monstro em sua conduta pessoal. Mas isso não interessa. Importa são as maquininhas que fazem a alegria dessa garotada imbecil, em permanente e doente conectividade.

A digressão tem seu motivo de fundo: a instrumentalização difusa que a tudo envenena (a do corpo, a do sexo, a dos alimentos etc.). A que me importa aqui, entre tantas outras, é aquela que assassina a linguagem em nome de uma comunicação fácil, rápida, prática e eficiente. “Comunicar” é o que interessa e pronto – a palavra apropriada seria “conectar”, que tem laivo de tecnologia em seu DNA. Hum... É burrice e ignorância. Desconhecem o amplo alcance da linguagem em nossas vidas, sua relação simbiótica (para não dizer sinestésica) com o pensamento e, em consequência, com o conhecimento. Nem suspeitam da diferença entre informação e conhecimento. Quem se expressa mal verbalmente pensa mal e está fadado a ficar à margem do conhecimento. Assim, a incapacidade absoluta para a abstração. Não vão além da aritmética pedestre. Adição e subtração já é muito para suas ervilhinhas cerebrais. Daí a tentação pela força bruta para resolver conflitos. Engravatados, com camisetinhas pretas, jeans e tênis ou com um trezoitão na mão. Fazem parte da mesma turma. Presos para sempre da pobreza de espírito, da ignorância e da boçalidade. Resta-lhes consumir.

Bem, vamos deixar claro uma coisa: não estou a defender que todos almejem tornar-se Machados de Assis. Uma linguagem rica e variada não passa necessariamente pela língua formal e muito menos pelo estilo alambicado das belas letras ou obscuro da academia. Mas “porra, caralho, mano!”, clichês sem fim e a linguagem pasteurizada dos meios de comunicação... Não dá! Não levam a lugar nenhum. Ah, espere aí, levam sim: ao centro de compras mais próximo.

Tomo, apenas como ilustração de nossos tempos infelizes, recente manifestação do tolo parlamentar Cândido Vaccarezza, por SMS, em mensagem para o deslumbrado (e espertalhão) governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A falsa pérola é esta: “A relação com o PMDB vai azedar na CPI, mas não se preocupe você é nosso e nós somos teu”. Por exemplo, você com teu não dá liga, mas deixa pra lá. O jornalista Fernando Rodrigues (Folha de S. Paulo, 19.05.2012) emenda com propriedade e ironia: “O petista poderia muito bem ter escrito ‘é nóis, mano’ ou ‘tá tudo dominado’. Seria o mesmo”. Todos modos de se expressar da bandidagem que tomou conta do país. F.R. foi sutil, que ele não é bobo.

Num uso utilitário (instrumental) da linguagem, todas as expressões se equivalem, a do parlamentar-cavalgadura e aquelas dos bandidos de todo dia. A mesma ossatura, mas nenhuma carne. Seria pedir muito dessa “gentinha”. Na grosseria das maneiras, na linguagem rastejante, a mesma visão apequenada do mundo, das relações humanas e da política. A mesma postura infecta. Deveriam partilhar da mesma cela, dividir o mesmo catre e o sujo vaso sanitário.

Justificar o maltrato à língua em nome da eficácia comunicativa (conectiva, putz!) que, por si, é duvidosa, é uma ação irmã da instrumentalização das pessoas, do corpo e das relações sociais em amplo espectro. O mau-trato à linguagem é indício discreto de inúmeros e nefastos maus-tratos. O homem como coisa, vulnerável, a qualquer hora, ao descaso, ao abandono e ao assassinato. Triste Brasil. maio de 2012