PERPLEXIDADES
1. Algo esquisito anda me acontecendo. Sinto como se estivesse de mim perdendo a língua portuguesa. Ela que, antes, se acomodava a mim com apreciável conforto - como uma luva de seda, não posso esquecer - em algum momento, hoje, pareceu-me ser o pé direito dos sapatos no pé esquerdo de meus membros inferiores. Algo como acordar e, postado frente ao banheiro, não mais saber a serventia de um chuveiro, um vaso sanitário, uma pia, uma torneira e um espelho. Espelho? A que serve um espelho?
As frases mais banais, aquelas que enunciamos sem nos darmos conta, tal o automatismo, como girar a chave na fechadura, ao sairmos de casa; repentinamente parecem estranhíssimas.
Esta sensação lembra-me outra: às vezes, contemplo uma mulher belíssima e me vejo na condição de um alienígena: "Que bicho é esse, disforme e bizarro?" Assim é que "Maria comprou laranjas." me sabe a construção frasal incompreensível. Não é um súbito esquecimento do que se soube; não é desaprendizado; é - sem razão alguma - ver pela primeira vez. Assim, o fácil se faz complexo.
O que se passa? Já perdi tanta coisa na vida, mas perder a própria e macia língua é das vivências a mais perversa e inefável, que nos atira ao mais impensável abandono.
2. Túmulo é algo que sempre me causou estranheza. Sua fixidez sugere uma fortaleza inamovível, intransponível; uma permanência incontornável a encobrir uma fugacidade também incontornável: a do corpo que se dissolve na terra.
O costume de alguns povos que os faz enterrar seus próximos no próprio quintal ou jardim me intriga. Para que isto ocorra é preciso supor que aquele lugar foi e será sempre daqueles sobreviventes que o habitam. A permanência outra vez sobre a impermanência.
Imagino algo esdrúxulo: numa situação até então impensável, a família se vê na contingência de vender a propriedade. Como faz? Deixa ou leva os túmulos? Cobra mais ou menos por isso?
Mas os túmulos lá estão e lá devem ficar, como também a família. Algo tão diferente da dimensão comercial, presente nos outros pertences e terreno que, a qualquer tempo, podem ser trocados ou vendidos. Você ter seus entes queridos enterrados em seu próprio quintal deve permitir uma forte sensação de estabilidade que se origina na permanência - pares irmãos. Bem distinta da experiência existencial moderna, que padece do instável e transitório cuja foz é a insignificância de nossa vida mediocrezinha. Não à toa, as metrópoles são o que são: passagens do ninguém ao nenhum.
Deixa pra lá.
sexta-feira, 12 de março de 2010
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