segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

TANTO DISSO, TANTO DAQUILO

Como tornou-se cacete e tedioso informar-se pela imprensa nesses tempos bicudos! Foram abandonadas, quase unanimemente, perguntas-chaves: "Como?", Por quê?" Mesmo como hipóteses, especulações. São inofensivas e levam a pensar. Enriquecem 100%.

Mas, não. Dão conta apenas da: "Quanto?" E mergulham os leitores, ouvintes e espectadores num oceano de estatísticas e porcentagens. 98% daqueles que estão atentos. Tanto disso, tanto daquilo. Seguem conclusões ofensivas e viciantes. Empobrecedoras. 95% delas.

Num apartamento vizinho, alguém morre de enfisema pulmonar ou tuberculose. Sei lá. Tosse a madrugada inteira, num considerável volume acústico, há 2 meses. Até agora (o instante em que escrevo, 3h40min - AM) foram 62 "expulsões repentinas e barulhentas do ar pela boca". Deve haver sangue.

Passo pela frente do Parque da Água Branca 2 vezes por dia. São 387 passos a cada uma delas, em caminhada ligeiramente apressada, não importa o ritmo. São 2,5 passos para cada um dos segmentos quadrangulares de placas de cimento, areia e brita. 5 minutos cravados ou 1 cigarro queimado inteiro. O supracitado vizinho sou eu amanhã, para felicidade dos antibagistas ferozes. Esta praga!

Computando-se 5 dias úteis por semana, ali, executo 3870 passos. Façam as contas para 1 ano, descontados 30 dias de férias e feriados. 78% dos passos com o olhar voltado para o chão (quem sabe encontre uma moedazinha), 15% para a frente, 7% para o trânsito parado.

Viram no que dá tanta informação quantificada? Em nada. Sinapses imprestáveis. Ouço do rádio: "64 mortos e 31 feridos. Entre as vítimas fatais, 2 crianças (sic). Como, nesta cidade, são produzidos 30 esquifes tamanho G e 5, P, por hora, as autoridades ouvidas constatam que muitos cadáveres adultos ficarão insepultos por algumas horas mais - façam as contas, por favor. Ainda bem que as crianças terão seus enterros devida e prontamente agendados. São abençoadas.

Há uma crise no setor funerário municipal: 40% das empresas envolvidas fecharam suas portas nos últimos 2 anos, em razão da crise financeira que afetou 87% das economias mundiais desde 2008. Supõe-se que, nos próximos 5 anos, haverá um "apagão" no setor de enterros convencionais. Diligente, o vereador Agenor Ferreira - PQS apresentou um projeto de lei propondo a adoção de valas comuns até que a crise seja dissipada. 74% dos economistas ouvidos não esperam prazo menor.

Levantamentos realizados no último mês notaram que 65% da população posicionam-se contra." Que levem os mortos pra casa!

Dão-me como doente por causas ignoradas. Acontece que 82% dos leitos hospitalares para fins de internação estão ocupados. Assim, "mifu!". Para os 2 casos, tenho respostas. Conheço 100% das causas.
DAS BANAIS DOMINAÇÕES


No Caranguejo

Num festim macabro, o caranguejo é banhado à força e comparece fantasiado em tons vários de vermelho. Sua vingança patética é a larga carapaça. Comovente e insuficiente. O martelo dá-lhe cabo em ataques insistentes. Os dentes nossos concluem a devastação. Manda outro! E estamos pacificados.


No Coito

Devidamente lambidos, macho e fêmea se emaranham em preparo. Pronta, ela se abre inteira para o abraço inconsútil de ambos. Segue o macho, que a fura em avanços incontidos. Até o desfalecimento mútuo, como se, derrotados, fossem um ao fim do outro.


Na Andadura

O corpo é lançado em posição vertical, a recusa extremada ao repouso. Então, por fração de segundo, é impulsionado ao desamparo do desequilíbrio. Retoma o prumo ao atirar, alternadamente, ambas as pernas para o vazio. Um compassado perder-se e achar-se. Quase uma queda que não se presentifica. Em frente, rente ao plano do chão, os pés batem resolutos a terra.

Na Culinária

Com sangue e carnes desfiguradas, abre-se a carcaça animal com a fúria dos dedos e o arranque do braço. Extirpam-se as vísceras depois de rasgado em lâmina o que antes era íntegro. Batidas e amassadas, as carnes recebem delicadas e sinistras carícias que as vão envolver até a operação final quando queimarão sobre o calor das brasas ardentes.


No Banho

O corpo já brilhante pela mistura de óleo e água expelidos, é despojado, em movimentos decisivos, das vestes úmidas. Jogado sob jorro frio da ducha, é esfregado e desfolhado numa emulsão de soda cáustica, gordura e essências perfumadas. Novamente submetido à queda vertiginosa da água, é, por fim, provisoriamente poupado. Para, de novo, ser entregue ao roçar repetido do algodão sobre a epiderme, em firmes movimentos de ir e vir Até que jaza seco.


Na Escovação

Agarra-se, na mão direita (os destros), um bastão plástico munido de um conjunto regular de cerdas de nylon. Na, esquerda, comprime-se um tubo também plástico, que, devidamente posicionado, expele uma substância pastosa, a que vai sobre as tais cerdas.
A boca é aberta o suficiente para que seja enfiado o bastão, logo acionado em movimentos ritmados de dentro para fora (e vice-versa). A substância desfaz-se numa espuma alva que inunda a cavidade bucal e escorre pelos lábios e laterais da boca, à maneira de uma baba. Os dentes são esfregados com intensidade e a gengiva, arregaçada para que os duros fios de nylon penetrem os intervalos entre carnes e esmalte.
O mingau resultante é cuspido sobre a pia que, antes imaculada, torna-se emporcalhada por resíduos de comidas passadas, quase nenhuma de ontem, muitas de hoje, numa mistura de bagaços e goma.
Conclui-se a operação com um atrito insistente do nylon sobre a superfície áspera da língua. É frequente que a espuma adquira um tom róseo (e até rubro), amálgama do sangue e dela mesma, um ente de constituição ignorada.

4 de dezembro de 2010