sábado, 8 de agosto de 2009

ALI


Uma tarde clara de verão. Nenhum aborrecimento à vista.

Era uma mesa grande, quadrada, num salão esvaziado. Única.

Evaristo, um homem de meia idade, barriga avantajada, modos suaves e temperamento bonachão, estava sentado, cercado de papéis para desenho, canetas, pincéis, tintas e a caneca de café com a asa quebrada. Seu mais recente fetiche. Na frente, de pé, um sujeito que eu conhecera num bar das redondezas, com quem não tinha intimidade. Era todo tatuado. Meu amigo o conhecia e me dissera que também gostava de desenhar – coisas amalucadas, expressas em figuras geométricas, superpostas, sufocantes. Nunca vi nenhuma delas.

Eu trazia uma pasta de desenhos, que mostrava a ele. Depois de examiná-los com cuidado, fixou-se em um, do qual não gostava. Ele adorou. Numa figuração acentuadamente geométrica, era possível ver uma série de celas da grande penitenciária local.

Olhei meu desenho pela última vez, e disse:
- É seu, se você gosta. Mas lhe adianto, ele não me satisfez. Não sei por quê; o resultado deixou-me infeliz.

Todo contente, ignorou a observação; enrolou o desenho e, sem se despedir, desapareceu pela porta fabril, escancarada dia e noite.

Evaristo não. E interferiu, sem nos olhar, antes daquela partida apressada:
- Precisamos pensar nessa infelicidade – e continuou desenhando.

Eu, ali, remexendo, sem interesse, meus papeis; divagando sobre coisas que não sei dizer. A tarde se estendia sem pressa e ficamos quase em silêncio, trocando curtas impressões sobre quem julgávamos engraçado naquela antiga vila de pescadores de poucos peixes.

Evaristo concluiu seus desenhos e mostrou-me. Olhos faiscantes. Era uma história em oito quadrinhos, oito pranchas distintas, onde ele próprio era uma das personagens – a principal.

No primeiro quadro, um Evaristo entre desconhecidos singrava despreocupado por uma rua tomada de passantes, numa cidade colonial de interior.
No segundo, ele se detinha, surpreso, examinando, com muito interesse, uma caboclinha bem apanhada entre os transeuntes.
O terceiro apresentava-a vestida de noiva e ele todo enfatiotado, em frente a uma ermida.
O quarto expunha as núpcias: a nave vazia da capela, o casal e o sacerdote.
No quinto, via-se a rua, aquela mesma rua do primeiro quadro, e eles, já casados, a passeio, felizes, aliviados.
No sexto, destampava-se a cabocla, observando alguém misturado ao bulício das calçadas, com muito interesse.
O sétimo era um perfil, em primeiríssimo plano, da noiva perquirindo o cenário, que não aparece.
No último quadro, Evaristo está só, também em primeiro plano (na verdade, um plano americano), braços estendidos, o olhar perplexo, vitimado por uma sudorese, súbita por suposto. Olha para o espectador.

Demorei-me um pouco mais sobre os desenhos. Evaristo se levantou, começando a sorrir com ironia, sua marca. Estávamos de saída. Ainda sentado, disse então, enquanto dirigia o olhar para ele:
- Custou, mas entendi. É... Estou ficando velho.

Deixamos tudo ali e saímos de mãos abanando para a rua, em busca das rotineiras cervejas. Em seu rosto, aquele sorriso permanecia muito bem ancorado. Eu seguia, pensando sobre tudo aquilo: o tatuado, meu desenho, a infelicidade entre tantas outras, os quadrinhos de Evaristo, a tarde aprazível, minha vilegiatura que se esvaía.
Foi quando sentiu suas primeiras dores letais. Mudo, desarvorado.

Indaguei-lhe se não era conveniente irmos ao hospital da vizinhança; precário, mas hospital. Afastou a sugestão com um balançar de dedos e disse-me, a voz baixa, preferir sentar-se no banco da praça em frente. Foi o que fizemos.

Ficamos ali, desfrutando da ventarola marinha, adorável nessa época do ano, do poente que se imiscuía em tudo. Então, pedi que me esperasse uns instantes. Ele, ainda me disse, voz baixa, que pensasse com carinho naquela infelicidade. O sorriso zarpara de seu rosto largo e maroto. Fui até o bar e peguei duas cervejas. Detive-me mais que o prometido e esperado – a proverbial falta de troco que sempre me atazanava.

Com os gargalos gelados entre os dedos, saí para a rua e dirigi-me à praça, ao banco, logo ali, aonde não consegui chegar, dada a aglomeração em torno da laje em que, por fim, Evaristo jazia.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

BARATINHAS NO FOGÃO: O QUE CABE A CADA UM DE NÓS

"Ele tentou fazer algum comentário doce, porém sua língua pendia na boca como uma fruta morta na árvore, e seu coração era uma janela pintada de preto".
Bernard Malamud

A vozinha sensual e juvenil começou:
- Alertamos aos senhores passageiros que é expressamente proibido fumar no interior desta aeronave. Lembramos ainda que os sanitários estão equipados com sensores de fumaça. Nós lhe desejamos uma boa viagem. Obrigado.
Era algo assim, como é de rigor.

O passageiro vizinho soltou o cinto de segurança e abriu as pernas. Bermuda tomara-que-caia, cueca vermelha de nylon, camiseta-espalhafato, chinelão, unhas grandes e sujas. Celular aberto sob as vistas. O rabujento permaneceu atento aos seus movimentos e ruídos orgânicos. "Escumalha!" Pensou com desprezo.

Na poltrona do corredor, um jovem promissor com cara de noivinho. O ranzinza observou com discrição os sapatos-cenoura, bico quadrado, em harmonia com o cinto, calças pretas, camisa de cetim amarelo-espanto, relógio de astronauta e, sobre a mesinha, a revista Quem. Celular aberto sob as vistas. "Escória!" Pensou com indignação.

Na coluna simétrica de poltronas, uma moça com calças jeans, também tomara-que-caia, tatuagem no baixo-ventre, camiseta pink com um roqueiro qualquer estampado em preto e alto contraste, sapatos com salto plataforma de bico-agulha, com apliques de metal, uma espécie de "chão de estrelas", MP4 nas orelhas, celular aberto sob as vistas. "Refugo!" Pensou com a boca tomada por excesso de saliva.

A vizinha, perua assumida, pretinho básico, chapinha no acaju farmacêutico tostado, correntão e pulseiras douradas em profusão, fitinha do Senhor do Bonfim. Ignorou o salto 17 e o bico-radar. Chico Xavier-uma biografia na mesinha. Celular aberto sob as vistas. "Rebotalho!" Pensou impaciente com o sofrimento; procurou esquecer. Em vão. "Se a fuselagem fosse alérgica, espirraria", pensava amiúde.

Na poltrona da janela, um adolescente: camiseta-escândalo, brinquinhos, "piercing", cabelos roxos espetados, escapando pelo boné invertido. Bermuda ampla como lona de circo e tênis-escarcéu, daqueles que espantam cachorros distraídos; videogame na tela do "note" e MP4 nas orelhas. "Ganga!" Pensou etupidificado, resignado com o mundo que se apresentava sem cerimônia; com a viagem que seguia seu curso claustrofóbico e tedioso. Acomodou-se no encosto reclinado; encostou o rosto na parede lateral; nuvens a perder de vista. Adormeceu.

Acordou na aterrissagem. Não tinha bagagem de mão. Enraiveceu-se com a bulha, a muxiba embolada pelo corredor, numa luta feroz para serem os primeiros a sair da aeronave, com o estacionamento forçado, inescapável, a indolência do resgate de bagagens. "Sucata!" Pensou estarrecido. Pernas ainda dormentes, uma vontade de urinar que se anunciava. Boca seca que se esfarelava.

No destino, pagou o motorista com o dinheiro todo trocado, que saiu aos trambolhos do bolso. "Merda!" Entrou no edifício mortificado pelo peso da mala.

Saiu do elevador transpirando pelas unhas, a mala agora no ombro. As mãos trincavam. Porta aberta, estava finalmente salvo, entregue à podridão da geladeira esquecida, às contas não-pagas, formando um tapete pelo chão da sala; ao dinheiro ausente no banco e às plantas mortas. O merecido relaxamento propiciado pelas férias anuais cumpria-se afinal.
FALANDO COM AS PAREDES

POR QUE INSISTE EM ESCREVER TEXTOS QUE NADA ACRESCENTAM, MEROS DESABAFOS?

Nem todos. Admito a ausência de novidades em muitos deles. Alguns são deliberados, mas devagar com essa obsessão quantificadora. Esses textos a que se refere servem à profilaxia: são desafogos de raivas compactadas ao longo de certos períodos de tempo. O muito do mesmo acaba me envenenando. Vivo neste mundo, nas ruas - do bas-fond ao gabinete.

A vida urbana, particularmente em São Paulo (poderia ser em qualquer metrópole brasileira), não permite escapes. Abandonei o automóvel - até gostava de dirigir. A impossibilidade de conviver com a falta de educação generalizada me atirou às estradas, que ficaram perigosas em excesso. Uma pena. A vida de pedestre é também impraticável: calçadas horrorosas, sinalização precária; invisibilidade patrocinada pelas autoridades de trânsito, desrespeito flagrante dos motoristas e, de novo, o brasileiro: não sabe andar nas ruas (e ônibus ou metrô) com o mínimo de cortesia e urbanidade. Assim, corremos o risco de sermos atropelados tanto pelos carros como por outros pedestres. O barulho e a sujeira completam o espetáculo de horror. Advirto: não tolero coisas assim: "a culpa é do sistema, somos todos oprimidos". Isso sempre descamba para o proverbial "deixa, que eu chuto".

Como não sentir raiva?! E nem mencionei o trabalho embrutecedor, o salário aviltante, a insegurança e a força bruta imperiosa. E há muito mais. A barbárie instalada. Sobre o poder público é melhor nem falar. Uma fraude.


RAIVA DESCONTROLADA É DOENÇA NA CERTA. O
QUE FAZER COM ELA?


Muitas vezes, não sei. Ora, o mundo está muito doente. Essa pregação de "vida sadia" é nojenta. A busca individual por aquilo que chamam de "qualidade de vida" ou "auto-estima" é pura auto-cegueira, biombo para não ver que as causas da doença estão firmemente implantadas em toda a geografia da estrutura social. Inamovível. Os criptofascistas estão em toda parte. Não adianta correr no parque; comidinha orgânica, meditação transcendental, yoga, morar em sítio e balelas assim. Não há saída visível e a impotência é real. Admito: não vejo inteligência nisso que chamam "vida alternativa". O problema não é apenas seu, é predominantemente coletivo. Ainda assim, faça a sua parte. É patético!

RESTA, PORTANTO, RESIGNAR-SE COM A INFELICIDADE INARREDÁVEL?

Sim. E apoiar-se em âncoras insensatas: consumo conspícuo, trabalho compulsivo, hipocondria, abuso alimentar, drogas ou largar-se na cama com portas e janelas fechadas; telefones e computadores desligados.

VOCÊ APRECIA A ÚLTIMA ÂNCORA, NÃO?

Sim, mas também sou tabagista incorrígel e frequentemente me encharco em álcool - a raiva descontrolada servindo-se de antigos hábitos perversos. Depressões antecipadamente preparadas. Enrijecer-se em convicções provisórias; martelar regras a esmo; vergonhas e remorsos insistentes. Minha boa saúde inusitada não me convém. Apesar de um câncer sarado (toc-toc-toc), sigo imune a doenças oportunistas. As cardiovasculares me esperam na curva. Sou, dá pra adivinhar, hipertenso.

Há, no meu caso, a leitura compulsiva, a escrita e o desenho. Em passado recente, havia também a fotografia, mas começaram a roubar-me as câmeras e objetivas na rua. Pivetes crackeiros. Sozinho, não saio mais para fotografar. Acabaram com a fotografia preto-e-branco e o laboratório doméstico. Não é mais possível fazê-los. O que designam como fotografia digital não é fotografia, é registro eletrônico aleatório de imagens e manipulação sequente (paintshop). Com vida muito curta. As câmeras têm o mesmo destino dos celulares: lixo. Um embuste, a alegria da mediocridade munida de celulares. Uma banalidade irresponsável, nenhum interesse em produzir beleza. E sabem lá o que é isso? " A beleza é difícil." disse Aubrey Beardsley. Claro que me refiro a essa epidemia de câmeras em telefones móveis. Uma praga.

Para mim, perdeu encanto e desafio, que o registro químico promovia. Sou um velho ranheta, chocoteando preconceitos em vão. Também tenho meus Gran Torinos na garagem.

É urgente que as pessoas consertem máquinas quebradas e parem de ser prisioneiras da obsolescência ardilosamente programada. Estaremos logo afogados em montanhas de lixo eletrônico com o último aparelhinho, em sua mais moderna versão, nas mãos. Bestas! Repare em todos os lugares: as pessoas são incapazes de ficar consigo mesmas, recolhidas em seus pensamentos; já alimentam a estupidez na infância. Têm de manipular maquininhas o tempo todo. Apreciam ser monitoradas; já precisavam de despertadores. O prá lá de sabido.

ENTÃO, É COMO SE OS HOMENS NÃO MAIS SE PERTENCESSEM?

É. Alarmante! Nem disso se dão conta. Essas velhas e tão matraqueadas palavras nunca foram tão atuais, muito mais agravadas: alienação e coisificação. Quando a política é pântano muito perigoso; feita para o afogamento.

CONVIVER COM VOCÊ NÃO DEVE SER FÁCIL. VOCÊ É MUITO CHATO.

Certamente. De perto, como todos. Não é mesmo fácil viver comigo, por isso vivo só. Casei algumas vezes, mas, nessa altura, chega. Esgotei minhas cotas. Quero ter e manter bons amigos e amigas até o ponto possível de nos suportarmos, sem nos ferirmos muito. A vida solitária é um alternar de prazer e dor. E quando a vida não é isso? Desculpe o truísmo.

VOCÊ AINDA TRABALHA. NÃO LHE FAZ BEM?

Não. Trabalho tornou-se escravidão. Só na arte não é. Acredito apenas na atividade criativa e, em alguns casos, na livre produção intelectual. "Livre", "produção"? A luz vermelha de advertência já acendeu.

SUA VIDA PROFISSIONAL SE DEU TODA NA ÁREA DA EDUCAÇÃO. COMO ARTISTA, SEMPRE AMADOR. POR QUÊ?

A Educação foi ilusão juvenil. Acreditava em seu poder transformador. Precisei de quinze anos de atividade para "dar com os burros n'água." Depois, foi fazer (quando deu) um miserável dinheiro para comer, beber, fumar, vestir-me, locomover-me e morar. A Educação não tem mais horizonte viável. O mal que está feito não pode ser desfeito. Penso na velha educação universal. Penso num certo sentido de disciplina, concentração, curiosidade permanentemente alimentada, alguma obsessão, escola e professores independentes e pesquisa proficiente. Depois de quinze anos, vinte de ceticismo, pessimismo e, por fim, a desistência aberta. O poder público sifilítico, o mercantilismo e a uniformização à larga tomaram conta de tudo e mataram qualquer esperança. As gerações jovens que estão aí são um lixo; não desmentem, só confirmam. Poucos se salvam. O que será deles?

O trabalho artístico amador, a literatura e o desenho? Sem eles me mataria, imagino. É a única coisa que ainda me segura. O amadorismo é a única garantia de nenhuma ingerência. Para mim, o território livre possível. Já me pagaram mal por isso, em poucas vezes. Acabo dando os trabalhos aos amigos e parentes. Quando gostam, e não têm de gostar sempre. Acontece que o tipo de desenho que faço não é passível de fácil comércio. É para guardar ou pendurar na parede; não é cartum; não é charge; não é caricatura; não é quadrinhos. Minha literatura é, em sua maior parte, feita de poemas. Há eventuais crônicas; eventualíssimos contos e anotações, poemas em prosa curtíssimos. Então...

Sinto muito prazer em realizá-los, mesmo quando implicam desafios e obstáculos em razão de meus próprios limites. Nem por isso deixo de me acovardar na preguiça.

Os objetos não-instrumentalizáveis, inúteis, são lindos. Amo seixos largados nos leitos dos rios, na areia das praias. Polidos pela água, para nada. Sempre coleto alguns aonde vou.

Prazer ainda em andar "chutando tampinhas"; andar à toa de bicicleta; nadar; tomar uma bebida solitariamente, papel e caneta na mão, apreciando as vicissitudes domingueiras das ruas, o silêncio, e ler sempre. Estar vagabundo é dos melhores prazeres "desta e da outra vida". Bem, a outra é a vagabundagem suprema: perder-se para sempre em repouso "eterno". O deixar de ser quem sou com leveza. Um grande descanso de mim. Fabuloso! Julgo religião uma coisa muito estranha.

MISSÃO

a Izolda

Enviaram-me aqui.
Nunca duvidei das intenções.
Nunca pedi.
Nunca perguntei.
Fui instruído a observar
Seus pequenos movimentos
De dedos ao descascar laranjas;
Ao afagar crianças;
Os olhares de quem nunca fecha
As janelas; as luzes governadas
Pelas nuvens.
Permitam-me que fique;
Destruam-me a memória
Para que habitante
Não me façam mensageiro.
Peço apenas a manhã que jamais anoitece
E que desapareça logo,
No fio das águas frescas.

agosto de 2009

domingo, 2 de agosto de 2009

DE NOVO, O MESMO

Como é de conhecimento e tédio de alguns todos, não há consolo: a juvenilidade é menina dos olhos das empresas, que vê aí ambição, arrojo e competitividade. A promessa de ascensão funciona como a cenoura presa à vara, nas fuças da mula ("Crescer com a empresa!" - "Só nos interessa mão de obra com valor agregado" Argh!). Não falam língua portuguesa, tagarelam por clichês - sinal ostensivo de imbecilidade empavonada.

Lembro-me de uma declaração ou citação de Milan Kundera: [Tamina chega a uma ilha deserta onde só há crianças. No final, elas a perseguem até matá-la.]
"E talvez toda a nossa era técnica faça isso, com seu culto do futuro, da juventude e da infância, sua indiferença ao passado, sua desconfiança em relação ao pensamento: no seio de uma sociedade implacavelmente juvenil, um adulto dotado de memória e ironia se sente como Tamina na ilha de crianças".

Geralmente, nessas instituições, ao se dar poder a um certo tipo de jovem contemporâneo, o que se vê? Apenas a compenetração e arrogância dos que ainda não chegaram às sabedorias de ofício, que só o longo da experiência favorece. Rifam-se aqueles com mais de 50 anos. Nem por isso a maturidade é garantia de competência; pode ser apenas amparo para a teimosia e obtusidade. Bidu!

Diz o bom senso que descartar ambas as idades seria maluquice. Entre a inexperiência e a inoperância, ficam com a primeira e que se estrepe a segunda; para a primeira, treinamento, MBA, pós-graduação, línguas estrangeiras, aparência, subserviência e toda a tralha. A segunda é matéria fatigada; lixo pra ela.

A receita poderia ser um risoto de preparação, reforma e mútua convivência? Sei lá.
Lamentavelmente, a humildade (palavra vazia, mesmo destituída do ranço cristão) é traço de caráter e isso não se ensina, não se compra, não se encontra por aí, pendurada em cabides.

A maioria das empresas adora pensamento único, vozes em uníssono, gestores com temperamento de sargento ou macios como malagueta cozida, por isso o trabalho moderno se assemelha tanto à "servidão voluntária", à escravidão consentida. Os empregados não se vestem, fardam-se. O traje pretinho multiplicado aos milhares. Rapazes e moças ambiciosos "vestem a camisa". E são tecno-dependentes: não largam o celular, que é o sucedâneo do grilhão de outrora. Discordar? "E... tá pensando o que, meu?"

Na arena, põem-se essa escumalha para se entredevorar ou se consumir numa atividade estafante e embrutecedora. Chamam a isso pró-atividade, competitividade ou horror semelhante.

John Lancaster, editor do London Review of Books, disse o seguinte sobre as grandes empresas varejistas:
"Muitas tratam seus empregados como uma commodity. Pagam tão pouco quanto possível, treinam tão pouco quanto possível e empregam o menor número possível. Às vezes, parece que a gerência usa uma fórmula: descobre o nível mínimo de empregados para que a loja funcione, depois subtrai 20%".

Jay Bookman, vice-editor de primeira página de The Atlanta Journal-Constitution:
"O capitalismo funciona tirando o melhor de nossa ganância; falha quando deixamos a ganância tirar o melhor de nós".

Gestão corporativa (management) é um filme B, que desperta os piores pendores. E está nas telas de todos os monitores onipresentes, das quais os olhos infra-humanos não se descolam. "Viva o futuro! E desocupar a área, dispersando, vamos circulando aí!".