segunda-feira, 6 de maio de 2013


SOLITUDE

 

Como ter a comida

E não ter a boca;

Ter o afeto

E não ter o outro;

Como ter as mãos

E não ter as outras;

Ter os olhos

E compadecer-se com a noite escura;

Como ter a voz

E a palavra ausente;

Ter a fadiga

E não ter o sono;

Como ter o silêncio

E resignar-se no alvoroço;

Ter a água

E não ter a sede;

Como no espelho opaco,

Adormecer e jamais sonhar.

Como um não-despertar,

Um nunca revelar-se.

ENCASQUETADO

 

Penso  que, quando morremos, somos resgatados do poço escuro pelas memórias alheias. Mas, e se pensarmos que a vida não passa de uma subtração de lembranças e uma soma de esquecimentos? E que a memória pavimenta o caminho do berço à cova? Para tudo acabar em pó e nada. De forma que, quando ainda vivos, o ato de despendermos tanta atenção em nós mesmos não deixa de ser tão excêntrico quanto aquele afogado que imagina salvar-se bebendo o oceano. Mal sabe que sucede ao mar seco um deserto. Vida é areia. Beber tanto para morrer de fome e sede. Inescapável, a areia não sacia. Custa muito sonhar e imaginar, tanto quanto lembrar. Que nos sirva de consolo apenas viver e morrer.

 

maio de 2013