Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas.
Só sei o nada aumentado.
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
Sobre meu rosto vem dormir a noite.
Em O Livro das Ignorãças
Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 1993
sábado, 29 de dezembro de 2007
A Felicidade Dezembrina
Dezembro é um mês controverso: há os que odeiam-no (do clima ao fervilhar de consumistas enlouquecidos, às várias nefastas ceias familiares); e existem visões líricas, como a do poeta e engenheiro de cálculos Joaquim Cardozo: "(...)[?] Velho calor de dezembro,/Chuva das águas primeiras/Feliz batendo nas telhas;/Verão de frutas maduras,/Verão de mangas vermelhas." [Ver Dezembrite Aguda, nas primeiras postagens deste blog].
Minhas palavras não girarão sobre o mês, servem para o ano inteiro e, particularmente, para as pessoas mais pobres ou ingênuas, condenadas pelas mazelas da injusta ignorância, ou as duas coisas, e para a demência da "posse" compulsiva de tralhas eletrodomésticas de última geração. Bem, eu passeava, a pé, (não faço exercícios físicos, nem caminhadas; eu passeio e me basta) pela praia, em Salvador, depois de entrar num supermercado próximo com dois propósitos: comprar agrião, pepino e coentro; refrescar-me com o ar condicionado; já andara uns 5km e o calor pesava-me, mesmo com chapéu, camisa, bermuda, sandálias e óculos escuros. Então, fui pensando.
Imaginei um casal, cujo marido se chamaria Edmilson e sua esposa Marinalva, com dois filhos, o Ewerton e a Elayne. Naquele instante, já estaria bem esboçada sua felicidade; depois de terem passado, todos juntos, nas Casas Bahia (São Paulo) ou a Insinuante (Bahia), depois do dia 20, e voltado pra casa de 4 cômodos, na periferia ou morro, carregando uma TV de 29 polegadas, um aparelho de som, um DVD, um microondas e uma paulada de 48 prestações.
Enquanto passeava pela praia, em sua casa, Edmilson e Marinalva assistiriam à TV; Ewerton e Elayne estariam ouvindo o último CD de Sandy&Junior, todos muito contentes. Eu me intrigava com a natureza daquela felicidade merecida e perigosa, com o peso, a espessura e a fugacidade de uma bolha de sabão, de um pardal na vizinhança de um bichano esperto.
Esses anúncios insistentes, histéricos e idênticos - deveriam fazer um só, de dez em dez anos - sempre me pareceram uma armadilha, engodo muito bem urdido. Essas lojas não vendem eletrodomésticos, mercadorias concretas, mas uma abstração bem conhecida: dinheiro. O incauto ingênuo compra dinheiro, financiamento; o resto tem a natureza de brinde, é o que leva pra casa e o deixa, por uns dias, bêbado de felicidade fátua.
De fato, ele não compra o que nunca vai possuir. De outro modo: não é dele o que imagina possuir, a jaca é da financeira. Ele hospeda em casa a tralha enquanto dura o financiamento, até que, ao fim deste (se efetivamente chega a haver quitação), resta um não-produto, por causa da preparada "fadiga de material", trazendo a morte súbita ou a lenta agonia final.
Aquela urdidura está recostada, e muito bem, em outra velha conhecida: a obsolescência programada, agora em núpcias com o financiamento. O cenário é mais ou menos assim: em 4 anos, aqueles aparelhos comprados por Edmilson e Marinalva começarão a apresentar problemas; tantos que não valerá a pena consertá-los, em razão dos custos da manutenção. Novos produtos terão aparecido no mercado, com novos recursos inúteis e idiotas, prontinhos pra quebrar. Os antigos vão para o lixo e, bichanas, as financeiras lhes oferecerão outras previsíveis e perversas oportunidades. Lá estarão Edmilson e Marinalva ao encontro de uma felicidade dezembrina novinha em folha. Lembra os cretinos celularizados, que proliferam como praga.
Eu continuei caminhando, agora com a boca seca e uma raivazinha que prometia tornar-se fúria e depressão. Nem quis a água de coco que estava ali à mão, cercado pelo "azul em abuso de beleza", o céu e o mar(Manoel de Barros). Estava absorto num conceito de Otavio Paz, designado por "ocaso do futuro", que, entre outras coisas, supõe um processo fabricador despojado de seus objetivos; "ele não mais se organiza de acordo com uma finalidade". Esta última frase entre aspas é uma referência às idéias do grande mexicano, nas palavras de Hannah Arendt. Quanto a mim, apertei o chapéu no coco para que enfrentasse a força da brisa marinha, que parecia querer me atrasar em minha volta pra casa. Quantas felicidades não passam de bobagens?! Efêmeras como todas elas são. Em frente, Mané.
Minhas palavras não girarão sobre o mês, servem para o ano inteiro e, particularmente, para as pessoas mais pobres ou ingênuas, condenadas pelas mazelas da injusta ignorância, ou as duas coisas, e para a demência da "posse" compulsiva de tralhas eletrodomésticas de última geração. Bem, eu passeava, a pé, (não faço exercícios físicos, nem caminhadas; eu passeio e me basta) pela praia, em Salvador, depois de entrar num supermercado próximo com dois propósitos: comprar agrião, pepino e coentro; refrescar-me com o ar condicionado; já andara uns 5km e o calor pesava-me, mesmo com chapéu, camisa, bermuda, sandálias e óculos escuros. Então, fui pensando.
Imaginei um casal, cujo marido se chamaria Edmilson e sua esposa Marinalva, com dois filhos, o Ewerton e a Elayne. Naquele instante, já estaria bem esboçada sua felicidade; depois de terem passado, todos juntos, nas Casas Bahia (São Paulo) ou a Insinuante (Bahia), depois do dia 20, e voltado pra casa de 4 cômodos, na periferia ou morro, carregando uma TV de 29 polegadas, um aparelho de som, um DVD, um microondas e uma paulada de 48 prestações.
Enquanto passeava pela praia, em sua casa, Edmilson e Marinalva assistiriam à TV; Ewerton e Elayne estariam ouvindo o último CD de Sandy&Junior, todos muito contentes. Eu me intrigava com a natureza daquela felicidade merecida e perigosa, com o peso, a espessura e a fugacidade de uma bolha de sabão, de um pardal na vizinhança de um bichano esperto.
Esses anúncios insistentes, histéricos e idênticos - deveriam fazer um só, de dez em dez anos - sempre me pareceram uma armadilha, engodo muito bem urdido. Essas lojas não vendem eletrodomésticos, mercadorias concretas, mas uma abstração bem conhecida: dinheiro. O incauto ingênuo compra dinheiro, financiamento; o resto tem a natureza de brinde, é o que leva pra casa e o deixa, por uns dias, bêbado de felicidade fátua.
De fato, ele não compra o que nunca vai possuir. De outro modo: não é dele o que imagina possuir, a jaca é da financeira. Ele hospeda em casa a tralha enquanto dura o financiamento, até que, ao fim deste (se efetivamente chega a haver quitação), resta um não-produto, por causa da preparada "fadiga de material", trazendo a morte súbita ou a lenta agonia final.
Aquela urdidura está recostada, e muito bem, em outra velha conhecida: a obsolescência programada, agora em núpcias com o financiamento. O cenário é mais ou menos assim: em 4 anos, aqueles aparelhos comprados por Edmilson e Marinalva começarão a apresentar problemas; tantos que não valerá a pena consertá-los, em razão dos custos da manutenção. Novos produtos terão aparecido no mercado, com novos recursos inúteis e idiotas, prontinhos pra quebrar. Os antigos vão para o lixo e, bichanas, as financeiras lhes oferecerão outras previsíveis e perversas oportunidades. Lá estarão Edmilson e Marinalva ao encontro de uma felicidade dezembrina novinha em folha. Lembra os cretinos celularizados, que proliferam como praga.
Eu continuei caminhando, agora com a boca seca e uma raivazinha que prometia tornar-se fúria e depressão. Nem quis a água de coco que estava ali à mão, cercado pelo "azul em abuso de beleza", o céu e o mar(Manoel de Barros). Estava absorto num conceito de Otavio Paz, designado por "ocaso do futuro", que, entre outras coisas, supõe um processo fabricador despojado de seus objetivos; "ele não mais se organiza de acordo com uma finalidade". Esta última frase entre aspas é uma referência às idéias do grande mexicano, nas palavras de Hannah Arendt. Quanto a mim, apertei o chapéu no coco para que enfrentasse a força da brisa marinha, que parecia querer me atrasar em minha volta pra casa. Quantas felicidades não passam de bobagens?! Efêmeras como todas elas são. Em frente, Mané.
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