sábado, 29 de dezembro de 2007

Brinde: "O Segundo Dia" de Manoel de Barros

Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas.
Só sei o nada aumentado.
Eu sou culpado de mim.
Vou nunca mais ter nascido em agosto.
No chão de minha voz tem um outono.
Sobre meu rosto vem dormir a noite.

Em O Livro das Ignorãças
Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 1993

A Felicidade Dezembrina

Dezembro é um mês controverso: há os que odeiam-no (do clima ao fervilhar de consumistas enlouquecidos, às várias nefastas ceias familiares); e existem visões líricas, como a do poeta e engenheiro de cálculos Joaquim Cardozo: "(...)[?] Velho calor de dezembro,/Chuva das águas primeiras/Feliz batendo nas telhas;/Verão de frutas maduras,/Verão de mangas vermelhas." [Ver Dezembrite Aguda, nas primeiras postagens deste blog].

Minhas palavras não girarão sobre o mês, servem para o ano inteiro e, particularmente, para as pessoas mais pobres ou ingênuas, condenadas pelas mazelas da injusta ignorância, ou as duas coisas, e para a demência da "posse" compulsiva de tralhas eletrodomésticas de última geração. Bem, eu passeava, a pé, (não faço exercícios físicos, nem caminhadas; eu passeio e me basta) pela praia, em Salvador, depois de entrar num supermercado próximo com dois propósitos: comprar agrião, pepino e coentro; refrescar-me com o ar condicionado; já andara uns 5km e o calor pesava-me, mesmo com chapéu, camisa, bermuda, sandálias e óculos escuros. Então, fui pensando.

Imaginei um casal, cujo marido se chamaria Edmilson e sua esposa Marinalva, com dois filhos, o Ewerton e a Elayne. Naquele instante, já estaria bem esboçada sua felicidade; depois de terem passado, todos juntos, nas Casas Bahia (São Paulo) ou a Insinuante (Bahia), depois do dia 20, e voltado pra casa de 4 cômodos, na periferia ou morro, carregando uma TV de 29 polegadas, um aparelho de som, um DVD, um microondas e uma paulada de 48 prestações.

Enquanto passeava pela praia, em sua casa, Edmilson e Marinalva assistiriam à TV; Ewerton e Elayne estariam ouvindo o último CD de Sandy&Junior, todos muito contentes. Eu me intrigava com a natureza daquela felicidade merecida e perigosa, com o peso, a espessura e a fugacidade de uma bolha de sabão, de um pardal na vizinhança de um bichano esperto.

Esses anúncios insistentes, histéricos e idênticos - deveriam fazer um só, de dez em dez anos - sempre me pareceram uma armadilha, engodo muito bem urdido. Essas lojas não vendem eletrodomésticos, mercadorias concretas, mas uma abstração bem conhecida: dinheiro. O incauto ingênuo compra dinheiro, financiamento; o resto tem a natureza de brinde, é o que leva pra casa e o deixa, por uns dias, bêbado de felicidade fátua.
De fato, ele não compra o que nunca vai possuir. De outro modo: não é dele o que imagina possuir, a jaca é da financeira. Ele hospeda em casa a tralha enquanto dura o financiamento, até que, ao fim deste (se efetivamente chega a haver quitação), resta um não-produto, por causa da preparada "fadiga de material", trazendo a morte súbita ou a lenta agonia final.

Aquela urdidura está recostada, e muito bem, em outra velha conhecida: a obsolescência programada, agora em núpcias com o financiamento. O cenário é mais ou menos assim: em 4 anos, aqueles aparelhos comprados por Edmilson e Marinalva começarão a apresentar problemas; tantos que não valerá a pena consertá-los, em razão dos custos da manutenção. Novos produtos terão aparecido no mercado, com novos recursos inúteis e idiotas, prontinhos pra quebrar. Os antigos vão para o lixo e, bichanas, as financeiras lhes oferecerão outras previsíveis e perversas oportunidades. Lá estarão Edmilson e Marinalva ao encontro de uma felicidade dezembrina novinha em folha. Lembra os cretinos celularizados, que proliferam como praga.

Eu continuei caminhando, agora com a boca seca e uma raivazinha que prometia tornar-se fúria e depressão. Nem quis a água de coco que estava ali à mão, cercado pelo "azul em abuso de beleza", o céu e o mar(Manoel de Barros). Estava absorto num conceito de Otavio Paz, designado por "ocaso do futuro", que, entre outras coisas, supõe um processo fabricador despojado de seus objetivos; "ele não mais se organiza de acordo com uma finalidade". Esta última frase entre aspas é uma referência às idéias do grande mexicano, nas palavras de Hannah Arendt. Quanto a mim, apertei o chapéu no coco para que enfrentasse a força da brisa marinha, que parecia querer me atrasar em minha volta pra casa. Quantas felicidades não passam de bobagens?! Efêmeras como todas elas são. Em frente, Mané.