sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

DOENÇA

Hoje é um dia,
Um prefácio de amanhã.
É uma data qualquer,
Antes do depois de amanhã,
Que é o dia.
Pensando bem: qualquer dia
É um tempo entre,
Mas não amanhã.
Todos os outros dias,
Passados e futuros,
São insetos circundantes.
É isso. Não posso esquecer:
O amanhã me espera com hora marcada.
Ele sim,
De banho tomado,
Roupa engomada,
Sapato engraxado.
Mas eu não.
Nu me encontro, nu ficarei.

Salvador, 12 de janeiro de 2011

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

MAIS OU MENOS DE BEM COM A VIDA

Um fim de semana banal no município de Cipó de Baixo, no sertão baiano.

Cleilde saiu feliz do consultório dentário naquela tarde de sábado. Finalmente se livrara de uma boca medonha que, há anos, a impedia de ir a festejos, cerimônias e passeios em grupo. Seria, finalmente, uma mulher do mundo.

Foi em trote veloz mostrar a dentadura novinha, brilhante e completa à família e aos vizinhos.

Mas nada se deu como imaginou: do sorriso armado à risada larga e espontânea, o desastre a surpreendeu, atirando-a num ridículo só. De dar pena. Cleilde era choro inteira.

A indignação tomou conta de todos. Ela deveria procurar o dentista e reclamar daquele armengue inadmissível. E foi o que fez na manhã seguinte.

Dr. Alberto e sua sogra proseavam sentados em frente à casa, aproveitando a folga dominical, a sombra e o cigarrinho de toda hora. Cleilde e sua única irmã, Dulcinha, se aproximaram em paços de nuvens. Dr. Alberto, matreiro, percebeu de longe a visita e a encrenca, adiantou-se logo:

- Cleilde, a que devo a nobre visita? Está confortável com os dentes novos?

Do fundo de seu acanhamento, um fantasma de voz respondeu:

- Não, Senhor.

- Por que, Cleilde? Todas aquelas provas não serviram?

- Serviram.

- Mas então o que foi? Pelo que vejo, está tubo bem.

- Não é isso, seu Alberto. É que toda vez que dou um riso mais acentuado a dentadura cai – Ela disse isso séria, mais acanhada ainda. Mas, para piorar, o dentista e a sogra não contiveram a gargalhada.Ela trancou-se em silêncio e ficou olhando para os dois, desarvorada.

Dr. Alberto, sem manifestar qualquer perturbação, pôs, de pronto, fim ao problema:

- Cleilde, não se preocupe. É que você não sabe, mas está fazendo a coisa errada. Com a chapa nova, você tem é que gargalhar com a boca virada pro céu. Pode acreditar, ela nunca mais vai cair.

Cleilde, surpresa com a simplicidade da solução, se despediu e afastou-se, agora (não de todo) conformada. O dentista acendeu outro cigarrinho, disse qualquer coisa que fez a sogra gargalhar; e as duas irmãs, já em distância segura, deram também suas risadas. Uma delas, de um modo meio estranho. E o domingo seguiu; chato à tarde e triste pela noite adentro.

Janeiro de 2011


A INCOMPREENSÃO DO INSETO NA VIDRAÇA

Eu ou ele.
O que separa o daqui-dali
De mim?
Do espaço pretérito
Antes meu e ora vão?
O liso que embalde agarro
Sob as pernas,
Frente às asas.
Não é o que dispensa intimidade:
É o nada que aniquila, inalheável.
Fica o ali de sempre estável
Num mundo intátil e oco,
Em que só me movo,
Colado em mim,
Escapado de mim.


FRENTE AO MAR

Os náufragos que não sobrevivem
Transmutam-se em bolhas de brisa,
Digo isso diante da janela.
Afirmo,
Sem o rubor das dúvidas.
Agora mesmo, longos minutos
De um abafado sufocante.
Súbito,
A visita de um náufrago.
De tão pequena a bolha,
Suspeito:
Essa foi criança,
Brincou como as outras,
Foi amada pelos pais
E, um dia, engoliu o oceano.

Salvador, janeiro de 2011

domingo, 9 de janeiro de 2011

A PRIMEIRA AURORA DE 2011


A BAÍA DE TODOS OS SANTOS VISTA DA PRAÇA CASTRO ALVES


ROUPAGENS

Há vestidos do Extremo Oriente feitos com seda muito delicada, de estampas miúdas, de cores tão sensível e harmonicamente combinadas que, nas lojas, caem leves e sutis dos cabides. Lembram logo um verão, aragens, peles de porcelanas esmaltadas, cabelos soltos e desalinhados, sombras benfazejas. Tanto evocam de beleza, frescor e juventude que nos trazem vontade de tê-los por perto. Como se, ao nos avizinharmos, as mulheres que os vestem, em mágica estranha, surgissem e permanecessem por perto. As almas rejeitam os corpos; elas se escondem no recôndito das roupas.



MALUQUICE

Para os aficionados por fotografia


Ajustado possuidor de Nikons mecânicas, fui, no Natal, presenteado com um registrador de imagens digitais. Reluto em chamar aquela engenhoca, que mais parece um brinquedo, de câmera fotográfica. A inexistência de uma ocular em seus modelos mais populares e minúsculos retira-me toda a intimidade com a cena, certo sentido de penetração naquilo que pretendo apanhar, misto de figuras e luz. Sem contar que, às vezes, me vejo refletido naquela tela de cristal líquido (LCD), impedido de ver a cena a fotografar. Um fotógrafo cego. Ou obriga-me a afastar o engenho e ao uso permanente de óculos. A engenhoca mais parece um chaveiro que mistura virtudes de um pen-drive com atributos de uma câmera de verdade. Mas fico pensando...

Comparo o estado de prontidão de uma, analógica com o, de uma digital. Neste caso, a imagem é pré-formada em memória interna (ou cartão) – um chip em suma. No outro, ela está numa condição inefável, sem qualquer registro ou impressão. Como a tinta numa folha de papel, num livro nunca lido. Tocado o obturador, elas se assemelham: na analógica, um registro, digamos, químico; na digital, ele é eletrônico.
Na primeira, o número de variáveis a ponderar e manipular, até o resultado final, é enorme e sob rígido controle do artesão-fotógrafo. Na segunda, a manipulação das variáveis se dá após o registro realizado, num computador maior, sendo, em si, um computador. Assim, a digital é um periférico. Sua imagem é muito frágil se for levada em conta sua durabilidade. O que não ocorre com a analógica. Um negativo dura 200 anos.
O registro em imagens na digital é um ponto de partida; na analógica, é um, de chegada.Na analogia, permanência, o que ela, imagem, é. Na digitalização, a interinidade, o que ela pode ser. Num caso, a imagem ainda sem contornos, então retida, resulta justa, congelada, circunspecta; noutro, volátil e alucinada.
A responsabilidade envolvida no instante do registro é notavelmente maior no uso da câmera analógica. Por isso, banaliza-se ao infinito o ato de fotografar no uso da digital. O ato de fotografar torna-se irresponsável. Encaixa-se como luva de seda em nossos tempos bicudos. A consagração do manipulável em contraste com a palavra empenhada do passado gravado em imagens.
Antigamente, se fosse desejado, fazia-se o retoque com lápis e pincéis especiais, filtros sobre lentes, máscaras na ampliação em papel, com resultados sofríveis, a depender do artesão em laboratório. Hoje, há programas desenvolvidos para, praticamente, refazer os registros, ao gosto do freguês.
A fotografia é também o testemunho de uma presença – a do fotógrafo (André Bazin). Na ora chamada era digital, há duas presenças: a de quem fotografa e a de quem opera o Photoshop, para citar o mais conhecido programa de manipulação de imagens em computador.
No passado, havia certa confiabilidade no registro e seu resultado final. Hoje, entre o objeto (a fonte de luz refletida) e a imagem impressa, há mãos sem-vergonha. Com algum exagero retórico, diria que, no passado, a imagem registrada resultava de um gesto também moral: a imagem-documento (o negativo é prova cabal). Hoje... nem é preciso dizer, mas digo: a irresponsabilidade em fotografar casa-se com o gesto amoral da manipulação sem freios. Mais: hoje, onde se encontra um original como prova daquela presença fotografante?
De que modo for, se antes, em viagens, carregava uma bolsa com dois corpos mais um conjunto de objetivas, com o chaveiro fotográfico, que cabe num bolso, tenho, nele, uma zoom Carl Zeiss que contempla distancias focais macro, grande angular (25mm), estendo-se progressivamente até uma tele de 250mm. E a jaca ainda filma. Ele é matreiro. Não é pra desprezar.
Engenhos diversos, diversas serventias.



O LEITOR DE FICÇÃO EM ATO

“Trata-se simplesmente de confrontar um personagem com um personagem, uma verdade com uma verdade.” G. Simenon, que se referia a outra coisa.


É A BAHIA! II


1. A Baía de Todos os Santos estava em estado de arte. Um luz deslumbrante. Como sempre acontece, nessas horas, por azar, não portava máquina fotográfica. Mas o assunto não é bem esse. Vamos a ele.

Naquela manhã, por volta das 8h, saía da praça Castro Alves em direção à avenida 7 de setembro. Ao cruzar a rua Chile, em seu término, quase fui atropelado por uma motocicleta que, em franca contramão, subia a rua, a praça. Recompus-me e me dirigi a uma fiscal de trânsito que, por sorte, fazia plantão ali mesmo. Era uma senhora afogada em chapinha, gel, maquiagem e uniforme. Não desviou o olhar das unhas nem da lixa enquanto dirigia-lhe a palavra:

- Senhora, Bom-Dia! É permitido subir a rua Chile?! Agora, quase fui atropelado por um irresponsável.
Sem alterar-se em nada, lixa em punho, olhar centrado nas unhas, respondeu:
- Não há placa que impeça.

E continuou se embelezando. É...

Mas São Paulo tem das suas. O cinismo é o mesmo: em São Sebastião, na praia de Maresias, pousadas e hotéis estão se apropriando das areias com mesas, cadeiras e guarda-sóis. Torna-se praia particular, em franca ilegalidade. Ouvido por um repórter, o funcionário da prefeitura respondeu:

- Não há legislação que proíba.
2. Voltando pra casa, buscava o ponto de ônibus correto na rua Carlos Gomes. Na semana anterior, atrapalhei-me com isso. Os coletivos para a Barra circulavam pela pista expressa, sem dar a mínima para meus sinais insistentes. Acabei informado sobre a localização do ponto adequado. Um pouco mais abaixo, em direção à praça Castro Alves. Lá fui eu. Daquela vez, fui feliz.
Hoje, novamente, fui surpreendido pela indiferença dos coletivos, velozes na pista expressa. E o ponto era o indicado na semana anterior. Procurei, apalermado, ajuda. Duas pessoas tomavam seu café com bolo numa banca improvisada:

- Bom Dia! Aqui passa ônibus para a Barra?

- Não, meu rapaz. É no ponto de cima.

- Mas... na semana passada, não paravam lá. Paravam aqui.

- Olhe, estou aqui há 8 anos. Param sempre lá – Não entendi nada. Foi quando interveio a outra figura:

- Ah, tem um, só um. Ele vem de... – E disse o nome de um bairro que desconheço. Retruquei:

- Tem certeza de que ele passa aqui?

- Passa!
- Bem, ele para aqui?
- Ah, sim. Mas só para quando ele quer parar.
É...

3. Na floresta de cafajestadas, veja que observação elegante de um baiano qualquer sobre o encanto – e poder de sedução - de certo andar feminino que ele muito apreciava:
- Ela anda com prazer!

4. Esta, é protesto acentuado diante de uma boca suja alheia, fora de controle, que esganiçava ali por perto:

- Quem trouxe essa fossa entupida?!


TEM GENTE PENSANDO A MESMA COISA

“Antes, havia um leitor. Hoje, há um consumidor que se recusa a fazer esforço [de compreensão]. É como se a ignorância fosse uma virtude. Percebo nesse fenômeno uma queda de civilidade.”

Inácio Araújo