quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

BREVES



ISAAC BÁBEL [O EXÉRCITO DE CAVALARIA]

Aquele mundo de cossacos, cavalos, judeus do Leste europeu e mujiques é tão alheio a mim, tão completo outro que quase nada ali, de fato, me interessa. Entretanto, algo penetra fundo e fica: a voz que me conta aquela estranha ambiência: a paisagem, as estranhas e tristes vidas humanas. A bruta e seca enunciação.


GEORGE SIMENON

" - Não é o crime que importa... mas o que aconteceu, o que aconteceu com aquele que o cometeu..." Sábias palavras de Maigret.

Os juízes - aqueles que não julgam, mas apenas aplicam - deveriam ter esse princípio em mente. Guardada a diferença, por analogia, os médicos de hoje - os que não cuidam, que somente leem exames - deveriam se importar bem mais com seus pacientes e bem menos com as doenças em si. Em análise, o homem e suas circunstâncias. Em ambos os casos.

Também por outras razões, Simenon é sempre uma fina companhia.


salvador, janeiro de 2013
ARMAÇÃO



Advertência: estando ali, observe o movimento febril das correntes marítimas. Ao pisar, sinta o fofo perigoso da areia fervente e, resolvendo avançar em direção ao mar, não se deixe enganar por um duro piso de grãos molhados pelas ondas insistentes.

Não deixe que as águas tépidas o encharquem muito acima dos joelhos, mormente se o mar estiver em vazante, quando o voltear alucinado das correntes escava inesperados vazios sob seus pés.

Não se deixe envolver pelo mar em consagração. Restrinja-se a contemplar, a distância, os distintos matizes do azul. Ou do verde,quando for a sua vez.Não olhe pra trás, deixe a horrenda cidade modernizada e seus carros pra lá.

Deixe sua valentia para outros embates. Ali, você tem tudo a perder. E só ganha em encantar-se.



antônio rebouças falcão - salvador, janeiro de 2013

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

UM COMENTÁRIO PASSAGEIRO




Em 2011, o Sr. Fernando Henrique Cardoso aparece em livro-entrevista, falando de si, do Brasil, do Mundo e das coisas [A Soma e o Resto, em depoimento a Miguel Darcy. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro]. Belo título.




Nesse meio de janeiro, 2013, o tenho nas mãos e nas férias baianas. Na página 89, me deparo com esta platitude: "É difícil se libertar do peso das ideias antigas... No mundo real, as práticas mudam, mas o discurso tem dificuldade de acompanhar a mudança. Fica defasado." Por certo, resíduo de sua prática docente. Dá o que pensar e o que descontar - é palavra em fala. A gana de comentar me move, tendo em vista que, ali, esse pensamento é amiúde glosado. Assim...



As ideias antigas (ou seu peso) não existem para que delas nos libertemos, mas para que as “relativizemos”. Elas devem nos seguir abraçadas sob a vigilância da dúvida (estão sempre seguindo). No correr do tempo, pedem divórcio ou perdão. Desfazermo-nos delas (ou de seu peso)? Nunca. Nós fomos e as somos - é nosso precário edifício. Soma portanto. E resto, as que não mais nos expressam nem dão conta do que imaginamos ser o mundo real. O discurso não é algo apartado da prática, ele é, em si, uma prática. Continuamos a ser aquela criança que subia na goiabeira, árvore cuja complexidade foi sucedida pelo discurso.



Todas as ideias surgem antigas ao "nascer". Verbalizadas, se fixam às palavras por óbvio, que pré-existem no emaranhado sintático de nosso pensamento. Antigas, portanto, são como um saguão que antecede os degraus que nos levarão a outro e desconhecido pavimento. Este, saguão de outro, e assim por diante, até não mais sabermos de onde partimos e aonde chegamos por inércia de sempre estarmos a pensar com palavras. Ideias, quando abandonadas em razão de não mais servirem como explicação de um mundo que se apresenta estranho, tornam-se um perigo para quem segue em frente, ou pensa estar seguindo. É andar sem patamares, pensando estar em comodidade. Pensar, de fato, não é confortável. É um nunca ajeitar-se, por isso a pessoa doutrinária é petrificada.



Talvez a característica de nosso tempo não seja propriamente a mudança, mas sua velocidade grande e maquinada. A impressão de desconhecermos para que direção, como pensa FHC, equivale a dizer que essa mudança não tem direção. Como a dizermos que se produzem cegamente dinheiro e objetos que entopem prateleiras e nossa casa. E muita ansiedade para adquiri-los e usá-los freneticamente. Nem bem sabemos pra quê. De outro modo, nos negarmos a embarcar nessa torrente, a deliberada atitude de pormo-nos na contramão, à margem, e, para aqueles que querem mas não podem, a sensação de “ficarem pra trás” e a angústia daí decorrente . Solidão de uns e escravidão de outros. O homem contemporâneo é, por condição, um animal infeliz a afogar-se em dívidas e a produzir montanhas de lixo, exposto a toda forma de auto-ilusão. Um imperfeito idiota. Não sento nessa mesa ou, pelo menos, busco não sentar. Prefiro ser “antiquado”. Quem sabe, em vão.



Desde sempre, as práticas mudam, o pensamento muda, nós mudamos e a expressão verbal por suposto e condição. A defasagem é do jogo, e é o motor que faz girar a beleza e grandeza da linguagem - a que nos faz homens. Nós somos objetos de sua "invenção". E, sujeitos. "É do pirão!". Estar aí no mundo supõe depararmo-nos com sustos sucessivos.



O Sr. Fernando Henrique Cardoso não precisava dizer o que disse. Ele sabe, é inteligente o bastante. É que a fala - ainda bem - é desobediente. Como as crianças quando se verbalizam. Quando nos damos conta, é tarde, já foi, escapou. Por isso, a palavra escrita, antes bem pesada, a que vem depois. O peso das ideias antigas decorre de sua repetição e, sobretudo, de seu registro escrito. Fala e escrita, uma corre atrás da outra; tentando se encontrar, nunca se cansam de escapar em dança de recíproca exclusão, nas torrentes dos livres pensar e expressar. Sócrates falava, Platão, depois, escreveu – uma maneira de atualizar o antigo na consciência dos leitores, na linha do tempo. Desconfiava-se da escrita. O que também não deixa de ser outro truísmo e uma glosa. É meu. Coisa de gente que fala sozinha.



Claudicantes, vivemos entre o sapato velho – deformado e de sola furada – e o, novo que aperta e mal se ajusta. O chão é indiferente, nos ignora. Condenados a caminhar sem descanso, na procura de incerto endereço, patinamos no escuro, pelos séculos.





Antônio Rebouças Falcão - Salvador, 12 de janeiro de 2013

GREGARISMO SEBOSO E PEGAJOSO




A chamada "sociedade de massas", nascida com a industrialização em larga escala (máquinas, equipamentos, alimentos, vestimentas, meios de comunicação, bens culturais etc.) trouxe de forma acachapante, para os indivíduos urbanizados, a necessidade doentia de pertencimento: movimentos com a vocação de produzir manadas específicas (mas sempre manadas) que se fazem ondas avassaladoras em busca de adesões: neo-pentecostais, "carismáticos", esotéricos, "naturebas", "orgânicos", adeptos de "qualidade de vida", leitores de auto-ajuda, eco-turistas, ambientalistas doutrinários, ciclistas militantes, pastores do anti-tabagismo, ativistas de sofá, missionários de qualquer fuça, cachorristas, maratonistas, "chefs" domingueiros, churrasquistas, glts de passeata, torcidas organizadas, baladeiros, blogueiros, centrais telefônicas ambulantes (usuários de celulares e assemelhados), indignados, motoqueiros tribais, Zés-gasolina, e muitos mais. Ufa!



Como corolário, o culto às celebridades de variada estirpe, que são os destacados em cada grupo de bovinos humanóides - espécie de touros ou vacas de leilão. Adeptos do espalhafato e inimigos da elegante discrição. A internet e as redes sociais são o "canal", a sopa no mel, fizeram o estrago. Lançam confetes e serpentinas de slogans, clichês (a precária verbalização adquirida a custa de pouco suor e pouca leitura). E tudo se espalha como uma pandemia. O mundo aí fora se torna opressivo, sufocante, ruidoso e estridente pela quantificação desvairada. Nada é qualificado, mas tudo é medido - %. As estatísticas tornam-se a explicação única em todas as áreas do saber.



A paisagem humana se torna indistinta. A polenta gigante da reprodutibilidade e da conectividade compulsivas é totalitária. A barbárie, através da força bruta, se instala insidiosamente. A palavra foi perdida nos bueiros das ruas congestionadas. Difícil escapar, entretanto, é possível num simples e esquecido "cada um a seu modo". Como uma idéia banal logo é plasmada em doutrina, gera pregadores e missionários, uma manada e um negócio de bilhões. Distanciar-se dessa praga global já atira algumas pessoas à condição de "suspeitos", "perigosos" e, claro, "doentes".



Não é bem o caso de ser "diferente" por capricho - há também a manada dos "diferentes" a qualquer custo - mas de não aderir, ficar à margem para observar e refletir, desligar as “maquininhas”. E arcar com as dificuldades de tal escolha; apesar dela, pensar dá prazer (para alguns poucos). Algo antigo: "pensar com a própria cabeça", "pode ir que eu não vou", duvidar e desconfiar sempre. Acarreta alguma parcela de sofrimento? Sim. Mas que outro jeito há?! É da ordem natural das coisas viventes. Toda adesão oferecida é perigosa.