segunda-feira, 5 de janeiro de 2015



A AMENA IGNORÂNCIA




Habitamos tanto a parte do que fazemos que podemos dizer que somos o que fazemos, bem mais do que dizemos ser. Até aí, não há novidade; isto já foi dito de várias maneiras, em vezes inúmeras. Bem, então o que se pode acrescentar? O que falamos não nos diz respeito? Falar não é fazer?



Posto isso, não sabemos bem quem somos. Talvez sejamos o que os outros dizem. Ou um composto de tudo, sem nada de fato sermos; ou massa de carne sobre ossos que anda, fala, fabrica ferramentas, às vezes escreve, come, defeca e dorme. Se reproduz e morre.



O que somos? Quem somos afinal? São perguntas inconvenientes, porque ociosas, não nos levam a desfazer mistério nenhum, a lugar nenhum, que é bem o nosso lugar, embora sejamos mamíferos territoriais dados a agrupamentos fixados. Já fomos nômades. Não pergunte quem você é, não é, vai se fazendo e se desfazendo até os vermes. E o outro? É o contra-espelho, sem o qual nos perdemos.



Acordar da sesta, depois de praia e comilanças, na Bahia, é bem o que se pode chamar de burrice digestiva, falta de assunto vespertina em sua plena acepção. Quer saber? Vou recolher meus pedaços de sonhos e memórias espalhados por aí, reduzido à minha insignificância e à condição prosaica de um mamífero qualquer. A vida segue, Zé Pereira.


A. R. Falcão - janeiro de 2015


CONVERSA DE VELHOS


Ali na sala, num fim de tarde qualquer, de um dia qualquer, num agosto qualquer, o Sr. Aníbal (92) trocava um lero-lero com a filha Isabel (70). Rotina de velhos.

_ Estou vendo essa caixinha em cima da mesa e me veio à lembrança tia Mimi. Quando estava atacada, fugia do quarto e ia andar na beira do rio durante a madrugada. Um perigo. Como a gente já sabia disso, ficávamos alertas, acordávamos meus irmãos mais velhos, que saíam na busca. Você acredita? Tia Mimi entrava em casa toda suja (na verdade, todos, que ela vinha arrastada) aos berros e acordava o mundo inteiro. Coitada, já tinha 95 anos. Essa caixinha era dela.



_ Meu pai, é a quinta vez que me conta essa história nessa semana. Não faz de novo, pelo amor de deus! Já disse, sou assim: não precisa repetir. Contou uma vez, não esqueço.



_ Está bem. Deixa pra lá.Você era muito menina, não acordava. A gente tomava cuidado. Você não conheceu Zé Jerônimo. Conheceu? Pois é, ele dormia num quartinho afastado de casa; era um agregado. Gostava de pescar. De madrugada, andava até o rio, pegava sua canoinha e ficava de vara em punho, subindo e descendo o rio, que ali era mansinho, águas calmas, calmas. Já de manhã, todos na mesa tomando café e cadê Zé Jerônimo? Meu pai saia à procura. Não era difícil encontrá-lo, quase sempre estava debaixo da ponte, na canoa, dormindo e fedendo a cachaça. Peixe nenhum.



_ Meu pai, é a sexta vez que conta essa história nessa semana, a segunda vez hoje. Não faz de novo, pelo amor de deus! Já disse, sou assim: não precisa repetir. Contou uma vez, não esqueço.



_ Não chateia, daqui a pouco você vai me chamar de caduco. Você era muito pequena, pequena mesmo. Um dia, sua mãe desapareceu, nem percebi. Durante a noite, saiu da cama, do quarto, da casa e foi pro rio. De manhã, a mesa do café estava vazia. Pra mim, estava na cozinha, mas não estava, não estava em lugar nenhum. Saí apavorado e avisei alguns conhecidos e fomos procurá-la. E nada de encontrar. Ficamos nisso o dia inteiro e a noite também. Seu Eustáquio é que a encontrou, também embaixo da ponte, mas no meio de galhos.



_ Já sei, ela estava morta. Meu pai, essa semana você me contou pela sétima vez. Hoje, é a terceira. É só uma variação trágica das outras. No fundo, é a mesma história.  É, a culpa é um desconforto amargo e não descola. Não faz de novo, pelo amor de deus! Já disse, sou assim: não precisa repetir. Contou uma vez, não esqueço.



_ E por que você nunca fala de sua mãe?



_ Ah, de novo não. Essa pergunta outra vez?! Já disse, não precisa repetir. Sou assim: contou uma vez, não esqueço.



_ Sua mãe era difícil.



_ Já sei. Não precisa repetir. Saco!

A. R. Falcão - janeiro de 2015