quarta-feira, 19 de outubro de 2011






DOCE RECOLHIMENTO

Leio, preferencialmente, deitado. Horas a fio. O mais longe possível do mundo que me enerva. Na definição de minha irmã, meu lar é uma caverna.

Próximos apenas a água (eventualmente vinho), cigarros e dicionários. Bêbado de silêncio, este útero da vida madura.

Vez ou outra, aconteço de adormecer, por instantes, com o livro no peito e óculos nos olhos. Ao despertar, noto que me esqueci de que era mesmo que lia. Mas um leve e teimoso esquecimento.

A memória permanece ainda adormecida, privada de um detonador adequado que a libere da trava dos sonhos. Fico à mercê de um palito de fósforo úmido, que não inflama o processo de lembrança. Não adianta, risco-o e nada.

Descobri, então, que me basta qualquer linha dos parágrafos que, instantes antes, me acompanhavam na viagem para meu maior prazer - o detonador.

O esquecimento entra em combustão, a memória - um trem desajeitado - inicia seu movimento e inundo-me daquela alegria serena que, atrevida, fugiu-me da cama e da alma para o escuro do sono.

Viro a página e sigo em contubérnio com as palavras.

outubro de 2011

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

DIPSOMANIA

Insatisfeito
Mês sim, mês não;
Nada mais havendo que
O satisfaça,
Compraz-se
Em autodevorar-se
Na perseguição do próprio rabo.
No desenho de um círculo que o cerca.
Engolindo os líquidos que o engolem.
Parece humano. Lembra um homem.

A CANETA TINTEIRO

in memoriam de Orson Wells

O fio delicado que ora vaza
Entre meus dedos,
Na tinta, desde a meninice,
Faz de minha pena
Perversa a memória.

Ela me deu a alegria
Da passagem
Das calças curtas aos cambitos ocultos.
Pernas que faltavam,
Não compareciam,
Não se tornavam.

Esse trenó que desliza
Sobre o branco da página
Não me traz Rosebud*,
Abre-me a outras penas.

As de todos os pássaros
Que um dia voaram
Para sempre,
Sem volta,
Para o horizonte,
Na terra redonda da infância.

(em homenagem a minha primeira caneta tinteiro, nos cinquenta de meu quarto ano de grupo escolar. Usei aqui uma outra, nova, mas da mesma marca)

* Rosebud, para quem não sabe, é o trenó de Cidadão Kane, célebre filme de O.W. Brinquedo querido de sua infância - a âncora e perda mais irreparável.
DOS ALBERGUES E “DIFERENCIADOS”

Hoje, 14 de outubro, moradores de Pinheiros, bairro paulistano de classe média, querem expulsar um albergue de suas vizinhanças. Procuraram o Ministério Público por abaixo-assinado e se deram mal. Os "politicamente corretos" se assanharam. Houve quem chamasse os albergados de "lixo humano", o que fez M. Bandeira, em célebre poema, pensar em "bicho", dada a degradação. Coisa antiga no mundo. Acontece e é fato.

Vida em albergue é ruim segundo o juízo dos próprios albergados, que são agredidos com frequência, furtados por muitos de seus pares, disciplina militar e alimentação medonha. Sofrem na mão de certos funcionários cruéis que, por sua vez, mal remunerados, infelizes, lidam com problemas enormes. Assim, os albergados acabam preferindo a vida nas ruas, o relento, ou, resignados, suportam o insuportável por falta de opção.

Conheço muitos deles. Um dorme em albergue e passa o dia em bibliotecas públicas. Recolhe latas pelas ruas para comer; mantém-se limpo como pode. Rejeitado pela família, idade algo avançada e sábio a seu jeito. Ensinou-me que não ter dinheiro não é motivo para nada. "Espere com paciência, que algo aparece. Não é? Você me apareceu para umas cervejas nesse feriado. Está muito bom. O que você acha daquela bagunça no Afeganistão?" Disse-me ele naquela tarde fermentada e triste, com um lero pronto no gatilho. Quantos brasileiros podem fazer isso?

Outra, que nomeio aqui como Dulcineia, uma mulher muito forte, bela em dignidade e em seu corpo de índia, jovem de seus 40 anos, carregadora de pesos impossíveis sobre a cabeça. Sempre só. Um dia, a encontrei atropelada na rua, sem gravidade mas ferida, com um de seus tornozelos destruído. Desolada e ignorada. Não teria como seguir a vida com aquele pé. Fiz o que pude em ambulatórios públicos e em minha casa. Desapareceu. Para sempre? Ninguém sabe. Conversávamos muito por aí. Disse-me, então, que sua salvação seria a prisão. Comida e moradia asseguradas. A liberdade de ir e vir já estava comprometida. Sábias palavras.

Há albergados(as) de outra natureza, mas, mesmo assim, "albergados(as)": têm residência, família e endereço fixos. Vão pra casa dormir. Com a vantagem da roupa lavada e passada. Problema enorme para aqueles outros. Deixa pra lá.

Abandonados pelas famílias, desempregados, doentes, prostitutas vicárias, viciados em drogas lícitas e ilícitas alguns, seu único alívio; entretanto, existem outros que trabalham como você e eu. A Constituição lhes garante o direito à moradia - direito básico. Há também essa história de "direito à vida" do qual muitos discordam. É, chegamos a isso.

Para muitos deles, ascenção social se traduz num quartinho de pensão infame e a posse de uma carroça (os mais jovens e fortes). Sem patrão. Há cães amigos, sua proteção e companhia - a expressão mais singela de sua vida afetiva. Eles não só parecem pessoas. São pessoas. Para alguns, não lhes falta a mais legítima altivez.

Gentes a mais, muitas sobrando. Não há tanto lugar. Não vai funcionar; essa história acaba mal. Não vai dar certo. Alguns mamíferos humanos em meio a elas. A maioria é boçal incorrigível, apedeutas endividados e "felizes" nas prestações intermináveis, muitos motorizados perigosos, outros nos estádios.

Quem, voluntariamente, morre primeiro, antes de também degradar-se em "bicho"? Faço drama, é preciso. A barbárie que amanhece em seu dia.