segunda-feira, 15 de agosto de 2016


SOBERBA
A. R. Falcão – maio de 2015
Em águas desconhecidas,
Entro a pé.
Pela pele, perscruto a lama insidiosa.

Num dia estranho desses,
Despertei, ainda sob o lençol,
E tive, de olhos abertos,
Um sonho funesto:

Em tempos remotos,
Vasculhando territórios incógnitos,
Numa manhã de abril,
Dei-me, num sobressalto, com sítio arruinado,
Frente a  meu esquecido irmão,
(morto)
Maculado e inaudito,
Em meio à terra destroçada e aos cadáveres da batalha vencida.

Depois de socorrê-lo, apaziguá-lo
E longo prosear,
Passei-lhe um segredo,
Em obediência a nosso pai,
Grafado num manuscrito
Há muito oculto.
E ele o leu, sem hesitação,
Entre o medo e a sobranceria:

"Sob a sola de teus pés,
Sobre as palmilhas de tuas botas,
Grassa uma maldição
Que desconheces.

Tuas mãos, em manhã inesperada,
Arrancarão da terra
Qualquer arranjo de vida.
Então, verás morrer,
Diante de teus olhos esgazeados,
A vianda de teus filhos.

A fome será tanta
Que vos restarão o entredevorar,
A devastação.
Assim, fartos de sangue,
Das paisagens derribadas,
Tu e a sobra dos teus
Fareis a fome, aos poucos
Abrigar as migalhas,
Que engolireis com sofreguidão desmedida.

Os sobrevivos,  mas não tu,
adormecerão por sete dias e sete noites.
No desespero, amputarás teus pés
E atirarás as botas às feras dos rios.
Em vão:
É tua asneira, teu tormento infrutuoso.

Acabarás quedo teus dias,
Sem audiência, teu fio de voz.
Por fim, em zanga, fundarás, para ti, uma religião
E sofrerás teus invernos nas orações estranhas,
Na única companhia dos destroços de teu cão,
Outrora fiel, outrora inteiro,
Que o resto de teus descendentes terão partido.
Verás, com olhos corrompidos,
As choças consumidas pelas chamas
E será confirmada a profecia.
Sobrará um fiapo de ti, a carregar como sina”.

Então, olhou-me em desamparo,
Dobrou os papéis, travou-se mudo
E ergueu-se como que amparado
Por mistura de orgulho e andaime débil.

Cumprido, em parte, o vaticínio,
Ainda sob a ira e a noite de seu sobrevindo silêncio,
Segui viagem a insondáveis divisas,
Entre a melancolia e a desídia,
Livre, para sempre, do fardo maldito.

Alheio à cama, descalço,
Constrito, acendi um cigarro,
Bebi um uísque sobre a lama e
Fui fazer o que as pessoas fazem:
Carregar seu cadáver na prisão do dia.

 TODOS ENTRE MIM

Eis
Minha sina: enterrar a todos.
As comportas foram abertas
E as águas já correm soltas.
De olhos fechados, observo
Como lagarto sob o sol.
Espero como um tigre
Na sombra escura,
Entre os arbustos.
Feito o feito,
Terei o que me aguarda:
Não a meia, mas
A inteira solidão.

E SE ...

A cada instante, o mundo não é mais esse ou aquele. É mais que esse ou aquele. É outro. Rigorosamente, o agora é passado recentíssimo. Assim, em qualquer momento, somos ainda mais ignorantes deste mundo, frente à sua complexidade incognoscível, frente a seu permanente mistério. O que julgamos saber não passa de especulação convincente, até não convencer mais e mostrar-se teoria errada. Novas hipóteses e teorias a serem verificadas. É como a ciência se mexe.

 A fantasia e a superstição são soltas. Daí a profusão de seitas religiosas, de espiritualidades de farmácia, de fanáticos armados; criando simplificações baratas que apaziguam seus medos - a escuridão das doutrinas e dogmas. Fazem da religião zona de conforto e não o estabelecimento de um sentido qualquer para  a existência e a vida. 


Resigne-se e afaste-se deles, porque são o verdadeiro perigo esparramado. Continue tentando conhecer o que o cerca e se faça mais humano a cada instante. Para quem está unicamente voltado para a vidinha prática e cotidiana e é incapaz de transcendê-la, ignore o aqui escrito e ligue, de novo, a televisão. O sofá não pode esfriar.

CORTESIA

De porta semi-aberta, nosso vizinho nos deixou seu recado:
"Por favor, chamem o IML
Ou a Polícia
E liguem para este telefone: 52342826.
Então, enquanto esperam,
Façam o que quiserem
Com o que, de mim,
Encontrarem".

ÁGUAS

Estou em perigo:
Afastei-me do mar,
Desenlacei-me de abraços,
Desconfiei de sorrisos
E bati meus pés sobre caminhos
Em que preferi adormecer.
Despertei sobre palhas
Que os ventos escolheram levar.
Vi-me sobre pedras,
Sobre mim, sobre pedaços
Difíceis de amarrar.
Resolvi chamar os peixes
Que se afogaram nos rios
Em atrasada despedida.
Sábias são as árvores
Que fazem sombra
Em dias de chuva.

ABISMO

Penso ociosamente num lago,
Um fim de tarde;
À margem, sento-me a observar.
Penso mais: sou um assassino,
O assassino do lago.
Minhas vítimas, em fila,
Vêm me cumprimentar.
Executo-as uma a uma.
Depois, cansado, adormeço ali.
Desejo transportar essas imagens
Sinistras para a nuvem de um sonho
Mau. Fracasso.
O imaginado não descola de mim
E o sonho é uma recusa.
Não,
Não fui eu, não sei de nada.