O
PASSEIO E A GRAÇA
Fruir a literatura implica sempre imaginar; numa palavra,
criar. É como sonhar, porém não tal e qual. Ver um filme implica observar,
próximo à experiência empírica de olhar, contemplar; extrair da sucessão de
imagens o vão oculto das conexões entre os planos. Como, clandestinamente,
espiar o sonho de um outro. Por isso o escurinho das salas de cinema. O
cinéfilo é um “voyeur”.
Disse próximo,
porque, em nosso cotidiano, não há cortes frequentes, mas um contínuo do qual
descansamos ao apelarmos para a memória de tantos outros eventos de nossas
vidas que aguardam nossa visita. Um mar de analogias secretas e íntimas.
Em ambos momentos,
leitura e assistência, é exigido o repouso corporal. A ordinária inquietude
física perturba o necessário assombramento que a verdadeira arte pede, um toque
de maravilha. No momento da audiência musical, das peças não-dançantes, o
relaxamento e o silêncio fazem as vezes do repouso de lá.
O que tem o sonhador de bisbilhoteiro de si, o leitor
tem, em vestígios esparsos, indícios de um vago ou intangível outro que lhe
escapam a cada nova leitura. O sonhador furta de seu sonho a narrativa que
monta em vigília; o leitor surrupia das palavras engenhadas sobre o papel os
sentidos que são de sua lavra. Mas não em sua totalidade: a leitura, a
assistência e a audiência não deixam de ser experiências sociais. Mesmo na
solidão, partilhamos convívios.
Na vida empírica, nos deparamos com o concreto das coisas
e pessoas que estão aí, no tempo e no espaço. Na fruição da arte, somos
confrontados voluntariamente com imagens nas quais escolhemos tomar parte. A
fruição é volitiva. O sonho parece que não. Embora seja um construto, fica a
impressão de termos sido pegos de roldão, como se participássemos de um evento
para o qual não fomos convidados e pelo qual, entretanto, somos responsáveis,
cúmplices. Daí o incomodo plúmbeo dos pesadelos nos quais nos metemos. O alívio
ao acordarmos é o da fuga bem sucedida de nossos infernos particulares - aquilo
que não queremos nem ler, nem ver, nem ouvir. A fruição artística pode ser
interrompida a qualquer momento; o pesadelo, nos limites insuportáveis do
horror. O sonho nos toma emprestado; a arte nos oferece. Não foi Nietzsche quem
disse “temos a arte para não morrer de verdade”?
Borges, às vezes, se dizia mais leitor que autor. Ler lhe
bastava em sua fome de criar, por isso, também, seu fascínio pelos sonhos e
pela memória; para ele, brilhantes da mesma pedra; por isso a cegueira
iluminada. E a arte? O vento e um pãozinho quente; um sequestro e uma dádiva.
A.R. FALCÃO - NOVEMBRO DE 15