terça-feira, 17 de novembro de 2015


O PASSEIO E A GRAÇA

Fruir a literatura implica sempre imaginar; numa palavra, criar. É como sonhar, porém não tal e qual. Ver um filme implica observar, próximo à experiência empírica de olhar, contemplar; extrair da sucessão de imagens o vão oculto das conexões entre os planos. Como, clandestinamente, espiar o sonho de um outro. Por isso o escurinho das salas de cinema. O cinéfilo é um “voyeur”.

Disse próximo, porque, em nosso cotidiano, não há cortes frequentes, mas um contínuo do qual descansamos ao apelarmos para a memória de tantos outros eventos de nossas vidas que aguardam nossa visita. Um mar de analogias secretas e íntimas.

 Em ambos momentos, leitura e assistência, é exigido o repouso corporal. A ordinária inquietude física perturba o necessário assombramento que a verdadeira arte pede, um toque de maravilha. No momento da audiência musical, das peças não-dançantes, o relaxamento e o silêncio fazem as vezes do repouso de lá.

O que tem o sonhador de bisbilhoteiro de si, o leitor tem, em vestígios esparsos, indícios de um vago ou intangível outro que lhe escapam a cada nova leitura. O sonhador furta de seu sonho a narrativa que monta em vigília; o leitor surrupia das palavras engenhadas sobre o papel os sentidos que são de sua lavra. Mas não em sua totalidade: a leitura, a assistência e a audiência não deixam de ser experiências sociais. Mesmo na solidão, partilhamos convívios.

Na vida empírica, nos deparamos com o concreto das coisas e pessoas que estão aí, no tempo e no espaço. Na fruição da arte, somos confrontados voluntariamente com imagens nas quais escolhemos tomar parte. A fruição é volitiva. O sonho parece que não. Embora seja um construto, fica a impressão de termos sido pegos de roldão, como se participássemos de um evento para o qual não fomos convidados e pelo qual, entretanto, somos responsáveis, cúmplices. Daí o incomodo plúmbeo dos pesadelos nos quais nos metemos. O alívio ao acordarmos é o da fuga bem sucedida de nossos infernos particulares - aquilo que não queremos nem ler, nem ver, nem ouvir. A fruição artística pode ser interrompida a qualquer momento; o pesadelo, nos limites insuportáveis do horror. O sonho nos toma emprestado; a arte nos oferece. Não foi Nietzsche quem disse “temos a arte para não morrer de verdade”?

Borges, às vezes, se dizia mais leitor que autor. Ler lhe bastava em sua fome de criar, por isso, também, seu fascínio pelos sonhos e pela memória; para ele, brilhantes da mesma pedra; por isso a cegueira iluminada. E a arte? O vento e um pãozinho quente; um sequestro e uma dádiva.


                                                                                                                    A.R. FALCÃO - NOVEMBRO DE 15

segunda-feira, 16 de novembro de 2015


COM TODO RESPEITO*

Muitas pessoas com fé de base religiosa pensam que podem transformar o mundo, mudar a realidade à sua volta. Não me refiro à determinação louvável de quem deseja mudar seu comportamento, mas àqueles que esperam alterações positivas e benéficas naquilo que não lhes concerne, naquilo em que não podem interferir. São os esperançosos "de boa fé" que imaginam resolver problemas graves e curar doenças de parentes próximos, amigos, ídolos com rezas e trabalhos místicos de acento esotérico. Uma rematada tolice, daí a proliferação de picaretas, espertos, patifes...

Nada contra a crença e a fé dos devotos. Elas os consolam na dor, o que não é, em si, um mal. Ajudam seu psiquismo, seu equilíbrio emocional em suma, os afastam do desespero. É um benefício universalmente cultivado. Resta aos céticos a resignação, com que convivem apaziquados.

Como a maioria dos semáforos paulistanos para pedestres (ou todos, a meu juízo e pela constatação empírica) estes, às vezes, coincidem com a interrupção do tráfego veicular, em sendo acionados. Da mesma forma, a cura,  o arrefecer do sofrimento podem "acontecer" após rezas, benzeduras e promessas ininterruptas. Se acontecerem, é que os "pedidos" foram atendidos.

 Os crédulos, em geral, são rígidos e inflexíveis em suas convicções. Ingenuidade, ignorância ou autoilusão. A fé lhes basta; a reflexão e dúvida sistemáticas são, neles, rarefeitas, porque inalcançáveis ou insuportáveis para suas fragilidades existenciais. São os sem-Iluminismo, ficam entre um misticismo arcaico e um ocidentalismo meramente comportamental. Não passam sob escadas embora sejam contemporâneos e digam ser dotados de razão e vontade (leia-se fé). Não percebem a contradição, são assim mesmo.

Outra: 86% da bancada evangélica e do eleitorado* entende que acreditar em deus torna as pessoas melhores; ignora que a grande maioria dos presidiários condenados, cumprindo pena, e, dos homicidas são crentes. Sobre isso se cala. Sem comentários.

O Alcorão* começa assim: "(...) 2. Esse é o Livro, nele não há dúvida alguma. É orientação para os piedosos [devotos]. (...) que creem no [no Alcorão] que foi decidido do céu para ti [para o profeta Muhammad] e se convencem da Derradeira Vida." A Bíblia não é diferente; é ver o Pentateuco e Evangelhos, por exemplo.


Nisso que chamam  Brasil, outros, “pátria educadora”, desde sempre, reza-se por saúde, segurança, justiça, chuva, promoção econômica, emprego, sorte, bonança, amor, dinheiro etc. Por isso é o país mais feliz do mundo, que o digam os camponeses vítimas de seca severa, os urbanos vítimas de enchentes recorrentes, mães e bebês vítimas da microcefalia no Nordeste, indígenas do sul mato-grossense, os atolados no deserto de lama tóxica em Minas, as vítimas de roubos,  latrocínios ou violência policial, mais mortes por assassinato (mais de cinquenta mil por ano) que os mortos norte-americanos na guerra do Vietnam (mais de cinquenta mil em dez anos) e tantos outros na amargura escura. Se sofrem ou morrem é porque estão em pecado e não sabem; o Brasil é o melhor país do mundo, é o que também dizem.

No buraco em que estamos,  a prática rezadeira se espalha como aedes aegypti em São Paulo, no verão. Que dizer dos inocentes mortos em Paris (13. 11. 2015), dos refugiados afogados no Mediterrâneo a toda hora e muitos mais por esse mundo afora? Por onde andam deus, deuses, entidades, magos e santos que não os protegem? Não foi Jesus quem, na hora H, disse ter sido abandonado pelo Pai? Pois é, leiam a Bíblia a que temos acesso já que não alcançamos o aramaico, o grego ou o hebraico. Distância de textos apócrifos tidos como “Bíblia”, reescritos por “pastores” patifes, enriquecidos,  para pobres fiéis sem instrução. Um crime.

 Aguardem as tragédias que sempre vêm por aí, provocadas pelo homem ou pela Natureza indiferente. Não adianta rezar, "meu irmão". Seja o que for, será. O melhor consultivo é o acaso que nos atormenta (ou não). Pergunte a ele; é infalível.

* Por quê? Pra quê? Pra nada.
* Fonte: Datafolha.
* NASR, Helmi (realizador). Nobre Alcorão, tradução do sentido para a língua portuguesa. Society of the Revival of Islamic Heritage – Complexo de Impressão do Rei Fahd.