quinta-feira, 30 de julho de 2009

ENGUIÇO
a minha irmã

O trabalho artístico uma vez concluído pede exposição, dar-se a ver, ouvir ou ler. A condição para isso é uma certa ousadia da parte do criador, desde a fatura; o que supõe uma personalidade forte, até impositiva - por mais tímido que pareça. A timidez é vencida pela arte. Pensemos em Kafka.

A necessária presença da ousadia é muitas vezes confundida com a arrogância, o egocentrismo. E não sem razão. Os criadores destituídos de severa autocrítica desaguam numa lama de vaidade antipática.

Assim, um criador equilibrado (como der) é um pemanente insatisfeito e inquieto. Deve ser deste modo, para o qual não há escolha. Ele é ou não é. Daí a idéia de que uma obra de arte não é concluída, mas abandonada, caso contrário, ela nunca se faz acabada, perfeita. O que sempre acontece. Acabada, por revelada.

No caso da literatura, pessoas "travadas", ainda que grandes leitores, podem apresentar sérias dificuldades para escrever. Ficam prisioneiras na noite da insegurança. Padecem de carência de ousadia. Uma vergonha atávica que os engessa. Um eclipse. Desconsidere-se que leitura é também criação, embora à maneira de um encosto.

Quando pedagogos (ai, ai, ai) ou professores dizem que ler é condição para escrever, há que se concordar; mas não basta, como se vê. Não há automatismo nessa área.

O mistério dos escritores de grande talento está na maneira como desfazem a fronteira entre a reflexão lúcida e o surgimento dela já esplendidamente verbalizada, beirando a concomitância.

Há um outro tipo, muito infeliz, que padece, tortura-se para desovar uma frase, um verso. Escrever é então uma agonia. E nascem belos feitos, de alto custo pessoal para o criador. C. B. de Holanda julga escrever um "saco". Para mim, um prazer inefável. É sempre uma atividade difícil, trabalhosa, obsedante, como qualquer criação.

Certo é que feliz ninguém é, como é de sobejo sabido. Quando a idéia se concretiza com facilidade surpreendente, é para se desconfiar. O cozimento em banho-maria ou exílio em fundo de gaveta torna-se um remédio necessário.

Para aquele que ainda acredita em criação tomada por espíritos poderosos, no gênio que estremunha, recomendo que se chame logo a "polícia" e mande prendê-lo em sua própria demência. Um ignaro deitado na rede esplêndida e pétrea de suas próprias convicções. Um qualquer um.
RETRO-ADMISSÃO NO CLUBE

"É um homem de pouca palavras e hábitos que certamente podem parecer estranhos para a maioria dos mortais. Passa dias e dias sem sair de casa, vestindo pijamas e um de seus lugares prediletos é a cama: recebe os amigos mais chegados estendido, a garrafa de vinho tinto ao alcance da mão, o cigarro que parece não se apagar nunca. Deitado conversa, deitado escreve. Cultiva cuidadosamete a fama de quem está brigado com o mundo. Um ogro - mas, no fundo, um ogro de pelúcia. Um bicho-papão manso. Seu humor é tão ácido que certa vez um amigo advertiu um visitante: 'Cuidado, se o humor dele respingar na sua camisa abre um rombo do tamanho de uma moeda'. É o escudo de sua ternura".

De Eric Nepomuceno sobre Juan Carlos Onetti

terça-feira, 28 de julho de 2009

PLATITUDES FUNCIONAIS

1. Já é inútil dizer: a escolha é de quem escolhe como a liberdade é de quem se liberta. Não temos nada a ver com isso, mesmo que discordemos dos motivos. De outro modo: exatamente porque discordamos, ele deve ser livre para escolher seu próprio caminho, ciente e responsável pelas consequências. Como devem todos.

2. Já é sabido: informação não é conhecimento. A primeira é cumulativa e não é digerível; o segundo incorpora-se ao organismo e faz-se modo de pensar e se reproduz em criação intelectual permanente. A informação é infecunda. Como um vírus, só é fértil quando implanta-se na dimensão do conhecimento. Acessória. Em sua própria condição, fica ali inerte. Mortinha.
Certos sítios da Internet que o digam. Internautas, perdoem-me a metonímia.

3. A mocinha de cabelo engomado em gel e "piercing" nas fuças vai fazer psicologia ("me interesso muito-muito no que vai no íntimo das pessoas, sabe?") e certo discurso a aguarda ansioso pela esperada adesão: truismos atolados em clichês sistematizados e envoltos em nomenclaturas obscuras, traduzidas do inglês ou francês, e, portanto, intimidatórias. Há muito desvelados por séculos da melhor literatura. Assim, produz-se uma batelada de panaceias, celebrizadas pela imbatível "auto-estima", uma espécie de chiclé na boca da escravaria intelectual.
MALHADIÇO

E de já saber
Como tantos outros
Que tudo tem um fim:
Os alegres,
Os tristes,
A porta,
A janela,
A paisagem e os mosquitos,
A mão que mal segura
A caneta bêbada.
Fio-me em não saber mais
O que deixará de acontecer.
E importa?
Às manhãs seguem as tardes
E as longas noites escuríssimas,
Relegadas a entranhas de lençois.