quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O DELE

Sonhar não um sonho seu;
Sonhar, mas o sonho do outro.
Cair de seu sonho
E sonhar por ele
Sem interferir-lhe a trama onírica;
Que não é sua.

Um sonho-balão
Em cujo cesto você deitasse
E simplesmente se deixasse
Levar
Por um balão
Que não é
Seu sonho;
Em que um outro,
Ausente,
Tivesse esquecido
Ou abandonado
Seu sonho -balão
No espaço celeste,
Num éter qualquer.

E você,
Sem que precisasse
Ou mesmo quisesse,
Não fosse mais,
Sendo entretanto
O sonho de outro.

Em seu desfalecimento,
Pousasse adormecido.

(fevereiro de 2009)
A FRAUDE NO FUMO DA TRIUNFÂNCIA

(este é um texto concebido para voz alta, tendo em vista uma personagem dividida entre o deboche e a indignação, em cujo peito ainda bate um coração patriota. Encarná-lo traz conseqüências: espera-se um triplo deslocamento. O primeiro decorre da própria encarnação; o segundo, da “briga” entre o leitor que você é aquele contaminado pela retórica, como o próprio texto; o terceiro, da recusa íntima em adotar os procedimentos indicados pelo autor, se você ler em silêncio).


O país é, em muitos aspectos, uma fraude; a começar do Hino Nacional e terminar no Código Nacional de Trânsito. Jogue, aí no meio, o que desejar: saúde, educação e segurança, para ficarmos em exemplos já enfadonhos.

Seu deleite pela retórica bacharelesca, esse véu de bruma umbrosa, a filtrar a realidade repugnante, se vê modernamente substituída pela retórica aritmética, desaguada em estatísticas sem fim.

Sentados alguns poucos, agachados outros tantos, de pé mais uns de monte, os brasileiros circundamos a mesa nacional, entupidos de avaliações para todas as simpatias, mas privados de um relicário de necessidades: emprego, salário, justiça, moradia, saneamento básico, escola, polícia e serviços pagos, vários. Sem legislativo respeitável, operante, parlamentares legiferam atabalhoadamente. Querem o seu.

Os órgãos públicos produzem sucessivas aferições de sua inépcia enquanto, ao lambermos nossa fratura exposta, a autoridade régia e fraude ostensiva passeia pra lá e pra cá no planeta, entre um palavrório e outro, grosseria e outra, muito bem cobertos pelos meios comunicadores, distribuindo esmolas e popularidade.

Como se tem eleições em profusão, na evidência incontestável de democracia ilusória, obrigam os brasileiros a comparecer ao palco, montado com cenário de ignorância e brutalidade, de dois em dois anos. Eles vão - não tem que ir?! - com os quadris dormentes por horas de propaganda eleitoral obrigatória - não tem que ver?!

Assim, triunfamos. Um paradigma para o mundo descortinar. Vendo de longe, há uma república com políticas inclusivas invejáveis, cidadania plena, estatutos para nenhum desamparado subestimar, bundas esculturais, futebol-negócio, batucadas e alegrias a fascinar estrangeiros mal-informados e autóctones esperançados. Poucos índios, restantes macacos e araras, florestas em chamas e a tigrada, na geral, enchendo o saco.

Entretanto, há um mistério: há um país invisível, não-governado pelos governos, não-gerido pelos gestores, não-terceirizado pelos terceiros, não-apreciado pelos preciosos nem avaliado pelas arapucas quantificadoras, que plana ou submerge silenciosamente, à margem do cenário sombrio e repulsivo que se vê nas ruas.

Dentro de cada um, não está em lugar nenhum - encanto imaginado ou inefável - ele espera por algo que se constitui por sua própria esperança vazia. Inexplicável, difícil de entender, dito e feito. Aqui como ali, gasoso, que, sem motivos razoáveis, ainda amamos.