sábado, 26 de novembro de 2016



RISCO


Inteiramente sob meu domínio, hesitava angustiado entre atirá-lo pela janela, para a morte, esganá-lo com aquelas mãos ou conceder-lhe a misericórdia por que seus olhos miúdos clamavam aflitos. Nunca vira nada igual: implacavelmente caçado, notava ali um camundongo indefeso, negro, negro, de penugem tão brilhante, rara e bela. O encanto de um, o pavor de outro. Sei agora que o sofrimento mútuo me fizera dormir com o animalzinho submisso em mãos estranhas. Passou um tempo, deve ter passado. Súbito, acordei de dupla forma: no sonho, de mãos vazias, feliz, aliviado. Do sonho, quem sabe, livre deste mim para sempre. Mas... nada tão perigoso.

GOLE SECO
“Ama com fé e orgulho
A terra em que nasceste”.
Conde de Alfonso Celso


Para não esquecer: o que será, será; o que virá, virá inclemente. Perdemos muitos estudiosos de ontem para ganharmos uma manada de idiotas internautas. A burrice em febre. Mais da metade dos jovens brasileiros nem terminaram o ensino médio. Tomem-se maiorias: a maioria dos bacharéis em Direito não é aprovada no exame da OAB (Justiça); apenas 52% dos formandos em Medicina conseguiram aprovação na avaliação do Conselho Regional de Medicina (SP)- (Saúde); a maioria dos universitários não entende o que lê (Educação); mais brasileiros têm morte violenta, mais que os mortos no Iraque e Afeganistão (Segurança); cento e tantos parlamentares sob a mira do Ministério Público (Política). Uma latrina.

Outra vez, para não esquecer: espalham-se as falsas declarações, ficções tomadas como fatos e as deslavadas mentiras de má-fé (a eleição de Trump foi beneficiada por crimes cibernéticos como esses). Por que e como pessoas se ligam e frequentam essas redes sociais? É o tripé: ignorância, ingenuidade e burrice. A porcaria infiltrada no coração das massas sempre toscas – o nosso tempo infeliz. Antes de se atribuir a este autor a pecha de “puro preconceito”, ler o editorial da Folha S. Paulo, de 27.XI.16, A Perna Longa da Mentira.  A maioria dos crimes de furto e roubo (61,25%), em São Paulo, tiveram como objeto “smartphones”. Agressores e agredidos numa alimentação recíproca, nas ruas, nos restaurantes, nas escolas, shows e nos confins do inferno.


Num país territorialmente extenso, espalham-se, de norte a sul, de leste a oeste, apedeutas para todos os gostos. Agora, munidos de maquininhas, de colunas dobradas e olhos fixos assustadores. Não é comovente, é apavorante. Sentem-se felizes e melhores; com as cuecas sujas, chicles, tatuados e com o futuro em bolsos furados. Para engolirmos e engasgar com o lixo das ruas. Nosso “habitat”.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016


ABELONHO

Até que tentaram,
Mas o apelido não pegou:
"Dois em um" era falso,
Homem não engravida ou
Faltava a genitora.
"Três em um" era melhor:
Dois homens e uma mulher,
Abel, Tonhão, Zizi
E o filho, Abelonho.
O verdadeiro pai? Quem?
Os dois saíram pra comprar
O que todos já sabiam: cigarros.
Ela, grávida, sem saber de qual
Dos quais.
Sem saber o paradeiro algum
De nenhum.
Muito menos o filho ora crescido.
De paternidade incerta, desaparecida
Para sempre.
Passou assim a ser o rico rapaz
De duplo ascendência, sem registro,
Sem irmã ou irmão, órfão e indiferente.
Lá, no sertão baiano, dele dizem:
"Gente muito gente".
Ter dois pais é riqueza
E mãe é sempre santa.


A. R. Falcão - novembro de 16

quarta-feira, 23 de novembro de 2016


ENGOLE, É MOLE


Todos os dias, acordar contrariado, arrumar, defecar, banhar-se, barbear-se, vestir-se, pentear-se, comer, beber, limpar, pegar coisas, apagar luzes, fechar a porta, sair, andar, esperar, tomar a condução pública, espremer-se, sair, andar e chegar. Submeter-se às oito horas de obrigações repetitivas e aborrecidas, entre os “bons-dias e até-amanhãs”, plastificando, ofertando sorrisos e mesuras, consumindo migalhas de vida e morrendo aos poucos, “... a mais sórdida e mais miserável das condições: a do homem que trabalha” (A. Camus), para, na sexta, embebedar-se com as mesmas pessoas que provam do mesmo fel. “ Um rosto que padece tão perto das pedras já é pedra ele próprio” (idem).

MONOTONIA

Como dizem: a cada dia,
Sua agonia.
Tome
De sua frota, sua cota.
Como essa incerta primavera,
Da fria manhã ao forno fera
Do meio-dia. Tome então
A miúda monotonia
Que incha até o alvoroço
Das festas nefastas.
Compre
Sua roupa de missa
Para dormir ébrio
Na liça, entre carniças.
Compre, principalmente compre.
Leitão, melado e cidra.
Sonhe, principalmente sonhe.
Atrás da porta,
Beijar a boa tia Bia.
Bonitinha, coitada e sozinha,
Lavando a louça ali, na pia fria.
Monotonia natalina,
Sensaboria: leitoa, farofa e muita pinga.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016


PERDA DE TEMPO

Escreve-se (tenta-se) o inexprimível e tem-se o ilegível. Resulta um texto de difícil compreensão, senão impossível. O leitor tolo e "colonizado" o toma como profundo e se vê na condição de “burro” ou ignorante, mormente se o autor estiver na moda e repousado sobre um pedestal europeu (Deleuze ou Lacan, por exemplo). O "complexo de vira-lata" rouba a cena e o moço, com o livro na mão e na cabeça, vai dormir deprimido. Existem leituras que não se põem logo de portas abertas, é fato, mas basta batermos palmas e elas se abrem com mesuras e nos conquistam para sempre. Grande Sertão: Veredas (G. Rosa) é um caso à mão. Mas a coisa é simples, textos e respectivos autores assim devem ser sumariamente abandonados; há, para serem lidos, inumeráveis obras inteligentes, bem escritas, complexas, mas claras. O bom é claro e abordável; a leitura, deveras prazerosa.



M. Foucault, numa de suas entrevistas, declarou, certa vez, que, em trabalhos para a academia, fazia-os deliberadamente obscuros nas primeiras trinta linhas, para com elas, adquirir respeito e impor-se. Se o ato de ler em sua própria língua se torna decifração, alguma coisa está errada: ou o leitor se vê, involuntariamente, na situação de um arqueólogo diante de língua morta ou atolado num lamaçal de pedantismo, vítima de mais um autor-pavão. Pena que as prateleiras da academia e da literatura estejam cheias de textos assim. Uma praga "muderninha".

“É CUM NÓIS, MANO!”

Começo por uma obviedade: o homem é um animal social, pois é. Ocorre que só se habilita para isso a partir da aquisição da linguagem oral e, mais tarde (ou nunca), a escrita. Elas são suas formidáveis ferramentas, as de primeira grandeza. Delas decorrem o resto: seu mundo interior e a pluralidade de suas relações com o exterior (o indispensável outro), sobre o lastro de memórias e sonhos, as matérias-primas das narrativas sem fim - a consciência, o pensamento. Sua constituição, sua essência em movimento para construir-se.


Hoje, em processo de autodestruição, o homem começa por pisar na linguagem que encontra ao nascer e desenvolver-se – o maior legado, e por retornar ao uso da força bruta (arma branca, de fogo, pau, pedra, mão grande, chute etc. tanto faz). É só ler e ouvir a expressão verbal empobrecida desses adultos e molecadas idiotas que povoa as redes sociais na “web” e a multiplicação, fora de controle, das mais diversas atitudes violentas, provocando, às vezes, danos irreparáveis. Causas conhecidas e discutidas à exaustão. Pra nada. A gente chega lá, de volta, quando nem sabíamos ainda usar o fogo. Quem sabe reste alguém pra contar a história, quem dera?!