quarta-feira, 30 de novembro de 2016


O LANCE

Não.
É tudo.
Tudo não é.
Tudo ser não
É ser tudo.
Ser nada é tudo.
O tudo não é nada.
O ser é que é.
Não.
É o que vai sendo
O meu, o seu, o nosso
Inverno;
A nossa, a sua, a minha
Miséria.

terça-feira, 29 de novembro de 2016


DOMÍNIO

As redes sociais já correm o sério risco de se tornarem, se não são desde o surgimento, a forma digital encontrada pelos idiotas, para disfarçar seu vazio e sua burrice na infinita extensão da web (coitada da avenida Paulista). Realizam seu exibicionismo, tido como festejo democrático, a partir delas. Têm-se na conta de um bem eletrônico, moderno, universal, movido a bateria e a obsolescência programada. Escravos da Apple e da Microsoft que, por sua vez, fazem uso da mão de obra servil no Extremo Oriente.

Reproduzem-se com figurino covarde, engordando-se no anonimato, a espalhar maus-tratos segundo a cor de sua patologia. O desastre está servido, basta sentar à mesa. Porém, as redes sociais são mais que isso; às vezes, algo bem melhor. Vai depender de quem delas faz uso; como facas, paus e pedras que têm e terão sempre serventias deletérias e letais. Os cretinos e o crime não saem de cena. Não dá para discordar. Acontece que as redes sociais pagam alto preço à vacuidade, à superficialidade e, ironia suprema, à desinformação. É a cultura do panfleto e das palavras de ordem. Os idiotas não leem, não sabem, deitam a vista sobre telas prontas; não escrevem, não sabem, motivo pelo qual as  teclas de suas maquininhas são diminutas, quase invisíveis.

Muitos de seus entusiastas e manifestantes são de uma ignorância alarmante; não sabem o que é uma grande-angular, que lhes falta horizonte além do próprio umbigo e dos festins ideológicos de sua tribo, o pertencimento atávico. O espalhafato inconsistente faz as vezes do lastro sólido de quem, há muito, se debruça sobre o velho e insubstituível livro ("Lembra? Aquele".) em casa ou nas abandonadas bibliotecas públicas. As raras, particulares passam bem, obrigado. O mundo lhes vem sempre pronto - homens Google. Entre tantas coisas incompreensíveis, o uso insistente do espaço público (coitada da avenida Paulista) me escapa. Sua ágora é a tela do smartphone, dos aparelhos de vídeo e rádio, agora todos com a peste da interatividade e da conectividade compulsivas - os burros são tagarelas e gregários por natureza, precisam de barulho, daí o uso preferencial de rojões (coitados dos passarinhos, cães, gatos...); a poesia das imagens no céu, dos fogos de artifício, lhes escapa. Não falam, gritam; seus ruídos já os ensurdeceram.


 Bem, eles levam muitas vantagens: não se acaba com eles; a sustentabilidade é seu modo de vida; são onipresentes, constantes e preguiçosos. Copistas, não criam; encostam como ímã de geladeira. A tecnologia lhes vem a calhar e a multidão é seu perfumado lençol de seda.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016


A BANALIDADE DE UM BRASIL

Fechou o guarda-chuva e enxugou os sapatos. Entrou no sufoco e foi interrompida pelo porteiro: "Seu Afrânio passou por aqui, mas foi embora um pouquinho depois que a sra. foi trabalhar". Sibélia agradeceu, pegou o elevador, arrumou os cabelos no  velho espelho e saiu para o corredor escuro, comprido. Entrou correndo em casa já molhando a calcinha.

Como a bexiga já ia cheia, não viu que seu cachorrinho, Bilu, estava enforcado na cozinha. Sobre a mesa, um bilhete e a chave que ele usava. Viu depois: "Adeus pra nunca mais. Sua ratazana tentou me morder. Teve o que merecia. A.".  Sibélia ligou a televisão, recolheu o guarda-chuva agora aberto na varandinha, tirou o cachorro da forca, ensacou-o, foi à lixeira e desejou, com todas as forças, vingança embora amasse A. como nunca amou outro homem. Tirou o vestido, pendurou-o no armário com meticulosidade, pôs o moletom que ganhara de outro namorado, sentou no sofá e lubrificou a máquina de ódio.

O telefone tocou, atendeu. Era Bel, a “zinha” sirigaita do 92, que dava em cima de Afrânio. Não contou nada e despachou-a com a cólica que a atormentava desde jovenzinha. Chorou curto, com os olhos, em silêncio, pela primeira vez. Procurou no quarto qualquer coisa que fosse dele, nada. No armário do banheiro, nada. No boxe, cabelos no ralo, dos dois. Limpou tudo. Voltou pra sala, na televisão, a novela das sete. Na cristaleira, um resto de licor de jenipapo, que bebeu no gargalo, lambendo os beiços e os dedos melados que passara no bico. A máquina de ódio se movia novamente. Chorou outra vez quase do mesmo jeito, porque agora tossiu. Ele voltaria, era previsível, repetitivo, maldito, liso e deliciosamente violento.

Pegou, na gaveta da cozinha, a maior e mais amolada faca. Deixou-a à mão, perto da porta, atrás do filtro. Chorou outra e pela última vez. Passou uma semana em que foi trabalhar direitinho como sempre. Nela, ninguém notou nada. Mais duas outras assim. Nada de Afrânio. Até que Sibélia sumiu de vista para surpresa do porteiro, de Bel e de algumas poucas, outras “zinhas” da repartição.

Vai daqui, vai dali, o fedorento deu o ar da graça. No quarto de Afrânio, sobre a cama desarrumada, a cabeça e o rabo peludo de Biba, sua amada gatinha ora podre. As janelas escancaradas para a vizinhança fuxiqueira. Na mesa da cozinha sempre suja, o resto do felino mais a faca, um bilhete que A. nunca leria e a chave que ela usava: " Seu filho da puta, nunca mais. Quem vai beber leitinho no pires agora é você, canalha!"


Sabe-se hoje, de ouvir falar, que Afrânio e ela mudaram de bairro. Ele, ninguém sabe pra onde; Sibélia foi para o Grajaú. Virou congregada mariana, amante do padre e quituteira aos domingos e feriados. Às vezes, pra trocar de celular, comprar um vestido novo e visitar a parentalha no Recife, se prostitui no Pari. Bel ficou grávida do faxineiro, abortou no banheiro e morreu. É o que dizem, mas ninguém sabe ao certo, bem ao certo. Só o porteiro que deve ainda remoer: "Tava quase pegando da. Sibélia de jeito". Este é Anildo, que fugiu da Paraíba. Dezoito filhos largados, esposa escangalhada e jurado de morte por maridos e namorados. Ele que, vaidoso, contava ou mentia nos botecos. Um pândego.