sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008


UM PASSEIO PELA ORLA

Quando, diariamente, resolvo sair de minha clausura vadia, aí por volta das 6h e 30min, cedo assim porque o sol já vai alto e o calor é ameaçador, fico, por instantes, na janela, observando alguns tipos – minha maior diversão nesses passeios matinais baianos. Se me observassem, me veriam como um vagabundo de classe média, meio desclassificado. Não ando como atleta amador e tenho hábitos nocivos como carregar um indefectível cigarro na boca.

Meu objetivo maior é chegar ao mar e permanecer por uns dez minutos em estado de graça, fumando, em silêncio, só como sempre, observando o mar azul, aberto e enorme que é possível divisar entre o Jardim de Alah e o farol de Itapoã perdido lá nos confins do horizonte. 180º de beleza infinita se você se abstrai da paisagem humana. Digo isso porque o último coqueiral foi transformado numa clínica fisioterápica ou casa de massagens, ou, academia de ginástica a céu aberto, criando um déficit de formosuras: graciosas massagistas manipulando corpos nem tanto, que parecem gritar um mantra de fundo: “Detesto meu corpo!”. Depois volto vagarosamente, em busca de dinheiros perdidos no chão. O passeio custa-me uma hora, do mar ao chuveiro.

Como dizia, antes de sair, da janela, posso ver dois tipos de idosos (também conhecidos como “os da boa idade” ou “velhos” mesmo) básicos: um é aquele senhor bem-posto, com tênis caro, novo, meias brancas, bermuda cara e camiseta cara, tudo de uma limpeza imaculada. Caminha como se marchasse; não vai muito longe, porque logo está de volta, bufando e transpirando cada vez mais. Teme ou já teve seu infarto, é ou será safenado. Segue direitinho o que mandam os filhos (herdeiros) e o cardiologista muito bem pago. Quando a coisa aperta, voa pra São Paulo ou para os E.U.A. Ele acredita que ou faz atividades físicas ou morre em três meses. Vive numa paranóia amena e, dali a duas horas, pegará seu Ford Fusion ou SUV do ano em direção ao escritório. Anda só, é disciplinado ao extremo, saiu de casa às 5h e 30min. Está pensando o quê?! É um empresário de sucesso, um grande advogado, um especialista em terceirização de processos, um alto funcionário da burocracia governamental. Honestíssimo.

O outro é meio capenga no vestir: tudo já é bem rodado, do tênis à camiseta. Usa um plano de saúde meia boca ou o SUS. Tem um ar simpático, de quem não recusa uma troca de palavras ocasional e desinteressada. Está preocupado com a saúde também – um pouco tarde, é verdade, que já fatigou bem seu quase cadáver - mas parece fazer tudo como se fosse uma contingência, uma obrigação que, no fundo, não lhe agrada. Geralmente, a esposa vai atrás, com trajes que lhe causam estranheza. Sua ocupação, além dos afazeres domésticos, é a missa dominical, a caridade religiosamente espontânea, o xinxim de galinha que os filhos, noras e genros adoram e que faz muito bem, é o que todos dizem. O negócio do seu Júlio, que vai ali na frente, é um baralhinho mesmo, um dominó, um cervejinha com parceiros de infortúnio aposentado e televisão, muita televisão. A Dona Isabel também não perde sua novelinha e adora o programa do Jô. “Tão fofinho!”

Já na rua, encontro dois tipos de jovens (os da “péssima idade” ou “burros” mesmo) básicos: um é aquela patricinha bem-posta, trajando seu fitness-fashion caríssimo, com seu MP-4 nos ouvidos e celular 3G nas mãozinhas bem tratadas. Cabelo impecável (R$ 300,00 o corte com penteado). Gosta de marchar, come arroz integral, mel com cereais, um cenourinha e é muita atenta à qualidade de vida. É uma vadia na maior parte do tempo. É ou vai formar-se em qualquer UNILIXO da vida. Vocação: psicologia, fisioterapia ou veterinária (gosta muito de bichinhos e, claro, da NATUREZA). Não presta atenção em nada, porque está atenta ao som previamente programado ou ao celular, mas não deixa de observar os homens, qualquer homem. Explico: para ela, todos são, sem exceção, potenciais estupradores ou pervertidos masturbadores. Acaba marchando mais que o necessário, uma vez que está mudando de calçadas e tomando desvios para evitar o encontro com a vilania masculina. Não perde baladas de entrada restrita.

O outro é o rapaz bombadinho das academias. Usa sunga para exibir a escultura brega (ao gosto gay) que moldou em seu esqueleto caro e tênis caro sem meias. Quer parecer o despojado rico, porque o essencial ele já tem em forma de músculos ou dinheirinho que papai lhe depositou na conta. Ambos, a jovem e o jovem, não usam óculos escuros, mas pára-brisas blindados de R$ 3.000,00. O jovem bombadinho, além do carro esporte, tem uma moto, uma coleção de multas (lembre-se: é rebelde) que nunca vai pagar e reclamações da INFRAERO: quando acelera a moto, o barulho é tão alto que atrapalha o tráfego aéreo. Quanto a nós, mortais pedestres, devemos ficar calados e surdos para sempre. O jovem pode não gostar; e se ele resolve usar os músculos que passam a maior parte do tempo inoperantes, a não ser, claro, quando diante do espelho ou exercitados no divertido amassar da cara dos outros impertinentes. Não lhes peça para ler um parágrafo. “Que coisa mais antiga, velha!”

Depois, encontro dois outros tipos interessantes: a senhora com algo de sobre-peso e celulite, na faixa dos sessenta. Usa seu fitness-fashion nem tão caro assim, tênis de atleta (recomendação da fisioterapeuta – duas vezes por semana, R$ 400,00 mensais sofridos) e marcha com grande determinação; é comovente. Jamais conseguiria acompanhá-la. Pela aparência, não tem papas na língua e está pronta a resolver qualquer problema. Essa não tem medo dos homens, qualquer homem. Experimenta, seu otário!

O outro descreveria como uma jaca compacta. É do ramo comercial, veio lá de baixo, trabalhou muito e hoje está bem. A cintura, há muito, explodiu, mas suas pernas exibem músculos de quem fez muita força necessária para o leite das crianças. Quando nem sequer imaginava, teve um quase enfarto e o médico o advertiu: ou faz atividade física ou morre em três meses. Os médicos só falam isso, acrescido de “Pare de fumar imediatamente!” Fumava e bebia com alegria, hoje sofre a tristeza da abstinência forçada, com os olhinhos miúdos e brilhantes de cachorro faminto e abandonado. Bebe limada ao lado dos amigos que bebem cerveja e contam piadas obscenas. Fazer o quê?! Diferentemente de alguns outros tipos “espertos”, não entende muito esse negócio que não param de buzinar como papagaios bêbados: auto-estima e qualidade de vida. Putz! Coisa de “veado”! Marcha também com grande determinação, mas sua fisionomia trai um certo incômodo de quem está pensando: “O que eu tô fazendo aqui? A que ponto cheguei!”

Por fim, há um tipo que também me chama atenção: habitualmente, é uma mulherzinha (pequena estatura), enxuta, de óculos e muita convicção. Faz mestrado em História, pesquisa quilombolas, marcha com tudo já resolvido, faz psicoterapia há três anos – ela não sabe bem por que motivo, mas, quando menos espera, começa a chorar e não consegue mais parar; é separada (“homem pra quê?!”), não olha pra nada especificamente, mas a direção é “em frente e sempre”. “Vou cuidar da minha saúde, que ganho mais”. Não tem medo dos homens, qualquer homem. Experimenta, otário! Encontro umas dez por passeio.

Bem, há o resto: nós. Tipos, por ora, desclassificados. A tigrada consistente: pretos e mulatos sem tênis ou camiseta, com havaianas ou imitações. Não marcham, não carregam MP-4 ou celulares 3G, olham tudo. Não têm nenhuma convicção, apenas um incerto futuro.

Somos o que chamam por aí de “cidadão brasileiro” com uma certa impropriedade. Cidadão não é bem o caso. Já temos saúde, não marchamos atrás dela. A saúde que, segundo a fraude que nos preside, beira a perfeição.

Finzinho de dezembro de 2008