VERDADEIRO AMOR
Nesses tempos bicudos, a convivência
sadia entre caninos e humanos decaiu da serenidade e temperança para a mania
bovina à beira da patologia (cão agora é "meu neném") - grandes
manadas possuem cachorrinhos peludos, mormente nas áreas densamente povoadas. A
meu juízo, o caso que segue traz alguma lições.
Ele morava sozinho e tinha um cãozito
(assim o designava). Trabalhava na Secretaria da Fazenda - era um barnabé. Pela
manhã, saía e só voltava no início da noite. O animal ficava só, portanto, o
dia inteiro. Deixava uma tigela com ração e outra com água. Depois de jantar,
abraçava o animal contra o peito, com intensa demonstração de amor, e ligava a
televisão. Como é fácil imaginar, o animal latia sem tréguas durante a solidão.
Parecia nunca se cansar. Os desesperados vizinhos ameaçaram matá-lo pelos
latidos intermináveis, agudos e irritantes e por julgar o procedimento do
barnabé um claro "abandono de vulnerável". O solteirão declarava
pelos corredores que sempre amou os animais, todos, qualquer um. Impediram-no
de criar cobras ali. Informado do sofrimento canino, decidiu não mais
trabalhar; Biubiu em primeiro lugar. Assim, acalmou os vizinhos e mitigou a
carência do maldito gritador.
Alguns meses depois, próximo do
despejo e desempregado, começou a latir - um ganido grave e brando. Biubiu,
feliz da vida, com tigela de ração no parapeito, passou a sorrir na janela. A
felicidade dos guris do bairro. Como se sabe, a felicidade dura pouco e, no
Brasil, o fundo do poço tem porão. É só aguardar que, logo logo, um parlamentar
amalucado - nossa especialidade - apresentará um projeto de lei, proibindo a
posse de cães histéricos por viúvas(os) solitárias(os) ou quaisquer mamíferos
de forma humana que vivam sós, apenas na companhia de peludinhos. Nosso
solteirão segue acorrentado em clausura, em cômodo provido de isolamento
acústico, com direito a ração e limonada, que adora. Estamos no Brasil.
Em tempo, este autor teve muitos
cães, mas em casas com quintais; nunca em apartamento, uma crueldade.