sexta-feira, 26 de maio de 2017


VERDADEIRO AMOR

Nesses tempos bicudos, a convivência sadia entre caninos e humanos decaiu da serenidade e temperança para a mania bovina à beira da patologia (cão agora é "meu neném") - grandes manadas possuem cachorrinhos peludos, mormente nas áreas densamente povoadas. A meu juízo, o caso que segue traz alguma lições.

Ele morava sozinho e tinha um cãozito (assim o designava). Trabalhava na Secretaria da Fazenda - era um barnabé. Pela manhã, saía e só voltava no início da noite. O animal ficava só, portanto, o dia inteiro. Deixava uma tigela com ração e outra com água. Depois de jantar, abraçava o animal contra o peito, com intensa demonstração de amor, e ligava a televisão. Como é fácil imaginar, o animal latia sem tréguas durante a solidão. Parecia nunca se cansar. Os desesperados vizinhos ameaçaram matá-lo pelos latidos intermináveis, agudos e irritantes e por julgar o procedimento do barnabé um claro "abandono de vulnerável". O solteirão declarava pelos corredores que sempre amou os animais, todos, qualquer um. Impediram-no de criar cobras ali. Informado do sofrimento canino, decidiu não mais trabalhar; Biubiu em primeiro lugar. Assim, acalmou os vizinhos e mitigou a carência do maldito gritador.

Alguns meses depois, próximo do despejo e desempregado, começou a latir - um ganido grave e brando. Biubiu, feliz da vida, com tigela de ração no parapeito, passou a sorrir na janela. A felicidade dos guris do bairro. Como se sabe, a felicidade dura pouco e, no Brasil, o fundo do poço tem porão. É só aguardar que, logo logo, um parlamentar amalucado - nossa especialidade - apresentará um projeto de lei, proibindo a posse de cães histéricos por viúvas(os) solitárias(os) ou quaisquer mamíferos de forma humana que vivam sós, apenas na companhia de peludinhos. Nosso solteirão segue acorrentado em clausura, em cômodo provido de isolamento acústico, com direito a ração e limonada, que adora. Estamos no Brasil.

Em tempo, este autor teve muitos cães, mas em casas com quintais; nunca em apartamento, uma crueldade.


terça-feira, 23 de maio de 2017

        
TOME

O dedo de si
Sob a pele, entre células,
O lápis, o eu de mim
Atrás, não dentro.
O papel, o vendedor de fígados,
De cérebros.
Eu e minha mão.
Estava eu mesmo
Sob a mangueira,
Tentando entender a "brigueilheira",
A "abeilheira" que melhor me deu a pica,
A dor de uma só.
Foi quando entendi.