sábado, 31 de dezembro de 2011

REFLEXÕES DOMINGUEIRAS
 
Comunicado de Falecimento

No dia 23 de dezembro, Evaristo Rodrigues (2006-2011) veio a perder sua curta vida no instante em que, num centro de compras desta Capital, saindo do elevador, foi, involuntariamente, esmagado por dezenas de pacotes e respectivos compradores, que desejavam entrar numa luta medonha entre si. Pisoteado por quem não saía e por quem não entrava. Ninguém foi responsabilizado. Compreende-se, a vida tem desses imprevistos letais. Fazer o quê?
 
Vida Moderna

Nossa vida, em si, é inapreensível. Só a percebemos devidamente embrulhada em ossos, músculos, órgãos, sangue e pele. Oportunamente registrada em cartório, com CPF e RG. Como, por si, não traz os atributos de um Ipad, melhor é desconfiar. Pelo menos até que surja um novo S. Job, essa coisa.

Eueu

A única vantagem da autocompaixão é, por um átimo, nos imaginarmos mortos, cercados daqueles que, supomos, nos queriam bem, se debulhando em lágrimas. O único prejuízo: ter, que, rapidamente, voltar à vida. Brincar é sadio. Não dizem?!
 
Ócio Virtuoso

A conta, no cálculo das faltas ao trabalho, é a seguinte: no comparecimento, ganhamos x mais aborrecimentos sem fim; na ausência, perdemos x, mas obtemos o prêmio do ócio, que não tem preço. Portanto, trabalhar tanto pra quê?! pra comprar bobagem, que forma a maioria de nossas aquisições?!
 

Perplexidade

Alguma coisa está errada: a mulher sozinha tem dois cães; o casal aposentado tem quatro; a dupla homo-afetiva possui um; o bruto musculoso tem outro, e assim por diante. Quando todos, cães e donos, latem simultaneamente sobra pra todos: com-cães, sem-cães, com-donos, sem-donos. Pergunto: por que não saem todos ao mesmo tempo? Esclareço: os cães com seus donos estrangulados por coleiras no pescoço e focinheiras. Assim, quem sabe, a vila, por alguns momentos, viveria o doce prazer do silêncio, quebrado apenas pelos delicados e livres passarinhos. Seria bom pra todos os animais.
 
Bonzinhos

Quem auxilia busca auxílio. As pessoas não percebem que o filantropo, ou o caridoso contumaz, é, na verdade, o mais rematado egoísta. Por isso, sempre diz: "Ajudar o próximo me faz um bem!" E a audiência o confirma: "Como ela é boa, ser humano de ouro!" .
Penso diferentemente. Ser "solidário", como se auto-intitulam, é cuidar de si. Receber ajuda ou solidariedade é vantagem apenas passageira. Depois, a vida prossegue com suas habituais dificuldades e proverbiais crueldades. Ignoram (força do hábito) que a solidariedade, de fato, diz respeito à coletividade, e supõe reciprocidade. Passa longe da individualidade.
Socorrer? Sim; Amparar as crianças? Sim. Os casualmente impossibilitados e fragilizados? Sim, até que se desfaçam das cangas. Gárrulos, os solidários devem parar com essa história de se autoproclamarem os paladinos da bondade, "inflados de auto-importância". Quem "merece compaixão" são os caridosos profissionais. Praga!
Idílio


- Porão de rebotalhos, de felicidade finada.

Quem disse foi você,
Não fui eu.
Quem pensou foi você,
Não fui eu.
Quem fez foi você,
Não fui eu.
Quem insiste em negar
É você, não sou eu.
Eu?
Só fiz quedar-me,
Por anos,
No chão dessa porta
A esperar que você, ao menos,
Me permitisse vê-la
Assim tão perto,
Assim tão crua,
Assim tão nua.
Agora, já pronta pra partir,
Parta. Vai, parta!
É bem fácil,
O portão não se fecha,
Há navios de monte,
Mar de monte.
 
O Ermo Azado

Ainda escuro fechado,
Abria, pé ante pé, as pálpebras de chumbo.
E ficava ali.
Na preguiça de sentir e pensar
O fuxico dos órgãos.
Assim, mais uns mesmos,
Sorvia alguma água,
Acendia um cigarro e a luz magrinha.
Pronto, portanto,
Para o deserto infinito
Da poeira cintilante e muda das vozes.
Protegido da cidade,
Certos afetos
E da barbárie das ruas.
Muito longe
E inexoravelmente desperto.