quarta-feira, 19 de junho de 2013


SIGNIFICAÇÕES

 

Penso na “fala” dos papagaios, que, na origem, é apenas sucessão de sons. Ocorre que nós, humanos, os preenchemos com significados para melhor apreciá-los. Os papagaios são repetidores, os homens, "preenchedores".

 

Uma característica essencialmente humana é nossa capacidade (vocação) de revestir de significações o que nos cerca e habita. Estas não são atributos do mundo, mas de nossas fabulações. As significações são um engenho humano por excelência. Que delas tenha resultado essa soberba e enganosa invenção – as religiões – não é de surpreender. É a humana consequência.

 

As significações que engendramos nos dão enorme conforto, porque nos agraciam com duplo e complementar pertencimento: o mundo, assim, passa a nos pertencer e nós passamos a lhe pertencer. Uma ilusão por certo, que o mundo é infindável mistério. No afã de desvendá-lo, criamos a cultura e nos inventamos. O homem é o deus do homem.

 

Pensemos no “latido-fala” dos cães. Diferentemente dos papagaios – os que só repetem – os cães imprimem sentido a seus sons. Estes são atirados ao ambiente para a incompreensão ou para um vago acolhimento; talvez compreendidos plenamente apenas por outros cães. Mas estes animais supõem alguma forma de entendimento; alguns outros também o fazem. Quase podemos dizer que há uma virtual situação de comunicação. O que ocorre entre os homens? Vão além: imaginam – um ato que, no pensamento de J. L. Borges, é uma criação de memórias – e, ao articularmos palavras em frases, as compartilhamos (as memórias) necessariamente. Condição imprescindível para a comunicação.

 

Esses animais, entretanto, estão associados a nós. Mais os cães que os papagaios. Aqueles, vadios, abandonados, sem nosso lixo, morreriam de fome, por isso viram latas. E, por isso também, buscam alguma forma de comunicação com os homens. Quem sabe um dia... Por outro lado, esse vácuo de insatisfação, nós é que o preenchemos. E laços formam-se entre nós e esses animais. Incluamos aí os gatos. Por que esquecê-los?

 

“Falas”, latidos e miados são privados de sintaxe – a grande capacidade do cérebro humano. Criamos nexos e sistemas: causais, analógicos, paradoxais, sintéticos etc. Os nexos animalescos são elementares, na forma de estímulos-respostas e suposições; os nossos são complexos. A nossa “amizade” com os animais são projeções, ilusões, humanos preenchimentos.

 

Hoje, quando constato a obsessão das pessoas por conectividade permanente, através de meios eletrônicos, sinto-me mais pessimista e mais convicto de nossa inamovível solidão. Nossos contatos virtuais por sons e imagens, a toda hora, num insistente agora, maquinalmente produzidos, são meros sucedâneos da comunicação presencial. Trocamos o “calor” do toque, tato e presença física por revestimentos significativos. Nossos laços humanos vão ficando próximos àqueles que criamos com os animais domésticos. Há, em suma, regressão. São laços tênues que passam a bastar por realização de nossos preenchimentos. O que falta nós completamos com significações que nós mesmos, em nossa solidão incontrastável, produzimos. O outro? Ora, o outro...

 

O grande risco é que, prisioneiros de nossas próprias significações, acabemos por nos perder no labirinto de nossas fantasias, sem o lastro do mundo concreto. Parece que não, mas os ódios armados por nacionalismos, sectarismos ideológicos e religiosos passam por aí.

 

Está escutando? Não? É seu celular tocando. Atenda logo, vai.

 

A. R. Falcão – junho de 2013

BANALIDADES

O homem esfaqueia a mulher;
O feijão é misturado ao arroz;

O guarda de trânsito leva um tiro
Na cara;

O quiabo é colocado no canto
Do prato;

Um transeunte é atropelado
Em plena calçada;

O bife é picado
Em fatias;

Um jovem é espancado
Até a morte;

A pimenta é acrescentada
Depois da farinha;

As garfadas são, pouco a pouco,
Levadas até a boca; até o fim.

A boca é limpa
Pelos cantos;

O atentado à mesquita
Mata 84 pessoas;

O prato, copo e talheres
São lavados.

Desligada a TV,
O pijama é vestido;

E, desligado o abajur,
Está tudo em paz e silêncio,

Segue a mesma noite de sempre.

A. R. Falcão – junho de 2013

segunda-feira, 17 de junho de 2013


REPOUSO

 

O homem se inunda.

A noite passa por aí,

O homem vê as folhas das árvores,

As flores dos manacás,

Que são mármores.

A delicadeza por aí vai,

A mariposa aguarda,

Os pássaros acordam

E mãos se passeiam em contentamento.

 

Delicado é o fim

Do escuro que se abre

Sob a lua e a alma de ontens.

Dorme o homem.

O corpo é vago e vazio.

A noite, linda, vai sempre embora.

O homem, determinado, renasce em sonhos.

E as manhãs o abençoam nas manteigas

Dos dias que virão.

 

A. R. F. - junho de 2013