sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O LIVRE-ARBÍTRIO DAS SEGUNDAS-FEIRAS

Parece não ser dado ao homem viver sem rumo, posto que tem pendor para a perdição. Vivendo a esmo, seu horizonte é a dissolução; desolado, busca recompor-se no que é mais rasteiro: a sobrevivência biológica contra o tédio de quem se desmancha no tempo, em inelutável esvaecimento.

O avesso dessa condição se vê na arquitetura de edificações gigantes: utopias, esperanças, religiões e ortodoxias em risco de se transfigurarem em fortalezas inexpugnáveis. O homem, por elas, se deixa ficar em prisões voluntárias, repelindo tudo e todos que lhe sabem estranhamentos.

Não satisfeito, desdobra-se numa intrincada tecelagem de normas, princípios, preceitos, preconceitos e códigos de conduta – autênticas chupetas salvadoras, ou, numa outra imagem: abelhas-rainha cercadas por colmeia devotada. A rígida sintaxe da qual não pode desvencilhar-se, sob pena de afundar-se em solidão, no deserto da dissipação – a interlocução com grãos de areia, a boca cheia de terra. Adão eterno. É quando se comunica para persuadir e, mais adiante, desentender-se; com um pé no plano destas ações quase simultâneas e o outro no contínuo daquela colmeia de adeptos que só se justifica ampliada.

Assim, sua história, às vezes, adquire a face de progressivas esgarçaduras, entremeadas por tramas bem urdidas, obstinadas. Se lhe é dado ver-se na fumarenta paisagem de sua humanidade. Difícil.

Como, por fim, suas ações não passam de empreendimentos baldados, resta-lhe a resignação de quem, desde sempre, se sabe poeira; que vai acabar sob sete palmos de terra, mera carniça dada aos vermes. Cadáver.

Entre viver e morrer, um travo de tanto faz. Mas disso prefere não saber. Vira o rosto estuoso e escolhe o vício incorrigível de camuflada jactância. Neste caso, pensar engendra arapucas, à maneira dos encontros com incertas horas marcadas. Eis um mamífero com atualidade perfeita: autopresenteado com teclado e monitor. Mas guardemos nossos rojões, que ele é uma banal ninfose. Deixemo-nos tomados pela retórica desmedida.

Salvador, 18 de janeiro de 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

VOU ATÉ ALI E NÃO VOLTO


Me escuta um pouquinho:

Do nada, reparei que, por meses, não colocava um CD ou bolacha nos aparelhos acústicos. São três horas da manhã de 12.01, uma terça-feira, e eu, que tenho dormido tão bem (para meus padrões de sono) me vejo acordado e já irritado com um som (porque não é música) medonho que entra pela janela. Batuques estridentes e pobres, vozes espalhafatosas em coro numa quase fala insistente. Deste ponto, parto para uma viagem, imaginando as pessoas que balançam freneticamente suas bundas, suadas, com suas roupas lamentáveis, seus bonés, seus penteados de chapinha, bexigas cheias de cerveja e a linguagem verbal dos ruminantes. Na Bahia, não há lei do silêncio. "A gente somos alegre, meu irmãozinho!" Não dá, isso vai acabar mal.

Parece-me que essa obsessão por ouvir música sem parar; todos com seus "apareinhos nas oreia", em todo lugar, a todo momento, acabam por me provocar enjoos. Então, não ouço nada. Será? Parece-me frágil, essa explicação. Certo é que sinto o mesmo em relação a cinema, lugar onde não ponho os pés há muito. Só de imaginar as filas, as mandíbulas moendo pipocas e engolindo refrigerantes, conversas inconvenientes... É isso mesmo: Avatar neles! Sentir-se-ão profundos, levando um lero-cabeça, depois jogam as embalagens do lanche pela rua e ajustam seus MP4.

Quando, surpreendentemente, sinto falta de assistir a um filme ou ouvir uma música, preparo um ambiente em que esteja inteiramente só (que, acompanhado, já me parece parcialmente só), sem qualquer possibilidade de interrupção, na minha casa. Nada de fones de ouvido ou telefone ativado, apenas a música enchendo o ambiente, num volume civilizado.

Acompanho os artigos sobre músicos e lançamentos de CDs que me interessam por atavismo. Será? Um deles me chamou a atenção: considerado o melhor disco de música erudita do ano passado (sei lá por que critério), peças para piano de Gabriel Fauré, de quem gosto muito - "ah! esse vou comprar". Gastei meu pouco dinheiro com livros e me esqueci completamente daquele, como também me esqueci dos intérpretes.

Ouvir, de fato, música ou assistir a imagens em movimento quase ninguém mais faz. Exigiria uma concentração estranha a esse mundo que nos cerca e nos toma brutalmente. Quando comento ou narro essa prática, julgam-me bizarro. A meu juízo, são pessoas mergulhadas em dispersão. "Bem, mas muitos passam horas na frente da tela, praticando games complexos, concentram-se, não?". Prefiro pensar de outro modo: os games (e seus programadores) é que pré-determinam os lances possíveis e, portanto, previsíveis; os jogadores os perseguem. Ora, são conduzidos, na ilusão de que conduzem. As múltiplas leituras de um texto literário descortinam o infinito. É coisa muito diferente.
Definitivamente, meu quintal não é deste mundo.

A cama cuja porta se abre por impulso da melancolia habitual sempre me espera com penumbra, silêncio, travesseiros macios e afofados, lençóis e fronhas brancos, água fresca. Meu corpo, como contrapartida, lhe oferece a preguiça dos movimentos pausados e a ausência de pressa qualquer, deixada muito distante - lá fora, no solo sujo e povoado sobre que nunca deveria pisar com tanta indesejada frequência.

Salvador, 12 de janeiro de 2010

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A FORÇA ARMADA

Para a Natureza, essa coisa, o homem é uma insignificância. São sacos da mesma farinha estelar. Deveria nos bastar sabê-lo, ficar no ponto pelo tempo de uma existência e pegar o ônibus(esquife)errado. Mas convenhamos: poder devanear é uma bênção do Nada que a tudo e a nós antecede. Não resolve e também não atrapalha; ajuda a passar o tempo, essa outra coisa.

Para início de conversa, como é sobejamente sabido, no tempo de nossas vidas, uma hora a mais é, na verdade, uma hora a menos. A pessoa faz que não vê e vira-se para o outro lado; na verdade, incontáveis lados.

Deixa pra lá: omnes feriunt, ultima necat (todas as horas ferem, a última mata – alguns relógios antigos traziam esta sábia frase no mostrador). Na mesma pessoa, uma se lembra, outra se esquece. Tempus fugit (a inexorabilidade do tempo que escapa, fora de controle – relógios antigos mais uma vez). A célebre expressão carpe diem (o dia passa), tão cara ao Barroco, justifica, há séculos, os excessos que, eventual ou frequentemente, não evitamos. Bebamos, comamos, façamos amor, porque assim tão jovens nada disso faremos mais.

O dito homo sapiens, entre outras coisas, caracteriza-se pelo número de cisões. Para cada uma delas, um escudo peculiar. Da mesma forma que portas, muros, paredes e janelas nos escudam, afastando estranhos perigosos ou não-íntimos curiosos, as formalidades no trato social fazem as vezes desses; o próprio uso particular da linguagem desempenha, amiúde, papel análogo. O jargão do especialista, o siglês e o estilo alambicado ou enrugado são o espalhafato da força armada em gozo de poder. Mas há as formas discretas de ocultação. Não se deve, portanto, anexá-los a juízos morais dos quais não podem nunca escapar: hipocrisia, covardia(insegurança)e afetação são os mais usados; e têm lá sua pertinência.

A proliferação de escudos em nossas vidas chega a tal ponto que para tantas cisões, tantos escudos. Por isso, esse interessante mamífero é desde sempre um mistério. Observe como ele, em rigidez cadavérica, nos desampara e nos faz nus na insegurança dos néscios.

O limite máximo nesse número indeterminado de escudos está naquele intangível que criamos para nos proteger ou nos esconder de nós mesmos. É quando um "nós" (eu) desaparece tão completamente nessa espécie de névoa-escudo que passamos a carregar uma sombra, um fantasma apenas nosso, como se já nascêssemos com ele; a impressão que permanece. Na maioria das vezes, invisível a seu portador, mas não a terceiros, a certos terceiros: amigos(as)íntimos(as), amantes de fato, boas esposas ou bons maridos e competentes profissionais, especializados em desmoronar proteções inconvenientes, aquelas que nos tornam cegos para caminhar em direção à vida plena e à morte serena -este par inatingível, desconhecido. Todos fingem saber. Não sabem.

Em rotina medíocre, cotidiana, a vida segue num presente faminto, num eterno meio-dia; o sol a pino, invisível para nossos olhos. Não fazemos sombra, não vemos fantasmas próprios, e a lucidez é mera ilusão no claro da luz que ofusca. Num quase paradoxo, a vida diária é pouco reluzente. Pobres animais no pasto onde, em vão, comemos, defecamos, dormimos e sonhamos. Até que...

Salvador, 3 de janeiro de 2010, entre parentes.

domingo, 27 de dezembro de 2009

LETAL

Ao colocar-se à venda,
Trocar o esqueleto etílico
Por esqueleto elástico,
Adaptável a diversa circunstância.
Em vez de copo-remorso,
A noite vadia
Do enfado sadio;
O corpo lavado em suspeito batismo.
Um homem novo,
Preparado para o pior:
A cama das chagas finais.
dezembro de 2009

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

O que não interessava fazer:
Desorientar-se ao enunciar
O que nem se desejou fazer;
Silenciar o silêncio que, por si, nasceu eloqüente;
Ouvir e esquecer o inaudito
No instante mesmo de desaparecer.
Ficar por fumarentas preguiças.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

HOMEM

Gosto de pensar que somos sobras vivas da memória do mar. Como se as ondas, ao baterem na praia, ao conversarem com as pedras, estivessem sempre a lembrar-nos desse fato. Ele nos sonha.

O mar como nosso lar ancestral. Gosto muito de observá-lo com certa ternura, certa cautela quando necessário. Às vezes, como um ventre materno; às vezes, como um ogro faminto.

A maré baixa está dizendo que ele nos quer de volta. Não nado ali, nessa situação. Aguardo a maré cheia e nado em paz, em certa comunhão.

O mar é das coisas do mundo que mais aprecio, por isso o respeito; não o temo.

Nossas relações sempre foram sem transtornos. É sábio conhecer a hora certa do encontro e do afastamento. O mar não divide a cama. A casa é dele, apenas nos tornamos visitantes ocasionais.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

NAS VIZINHANÇAS DO MC'DONALD'S

Uma das diferenças entre certos mamíferos e o cachorro é que este come tudo que lhe é oferecido, lambe as sobras e deixa tudo limpinho. Já o homem, depois de comer, joga embalagens e os restos pela rua. Assim, o homem, para se educar, deveria comer de quatro e o cachorro, sentado; com direito a talheres de prata, porcelana inglesa e guardanapos de linho.