CAFÉ COM PÃO, MANTEIGA NÃO
Voltar ao território da infância revela imagens imprevistas, à maneira de uma aventura para o fundo de uma caixa de velhas e esquecidas fotografias, que, enquanto nos divertem os dedos, nos despenteiam a alma.
Pouco depois, o lento e cuidadoso recolher das figuras espalhadas pelo tapete nos vai injetando mundos paralelos, simultâneos; mal saídos do esboço em que nossa vida se desenha no tempo. Alguns se abrem para a alegria das mangas nos quintais; outros para vergonhas convenientemente sepultadas, fracassos registrados em cartório. Outros cujos mortos ainda sorriem e nos acenam; ou aqueles que embalam insepultos que nos perfuram com um pesar difuso e se sucedem nas paisagens familiares.
É assim que, pouco a pouco, mergulhamos no banco dos ônibus modernos, de perfume suspeito, com o rosto contra o vidro da janela lacrada, dvds inenarráveis e compulsórios, esfriados pelo ar condicionado hospitalar. Bem mais tarde, em trânsito, vamos nos deixar tomados pelas imagens das estações ferroviárias que divisamos degradadas pelo caminho que nos leva à cidade natal.
É sempre assim para quem conheceu as ferrovias brasileiras que cruzavam o interior. Alguns de nós estão transtornados e subitamente possuídos por, hoje, confortáveis reminiscências: as sacudidelas regulares, vapores tantos, aroma acre de fumaça, chiados de válvulas, tosses mecânicas, poeira onipresente, apitos inesperados, o cheiro único dos carros-restaurantes, cravos vermelhos sobre as mesas, o escuro envolvente dos carros-leito, locomotivas fantásticas e amedrontadoras, o piso ora de cimento compactado ora de granito moído das plataformas. Circunspectos chefes de trem e estações, picotar de bilhetes durinhos, jornaleiros, baleiros e sanduíches improváveis. Passeios ao longo das composições em movimento. O máximo! E uma ansiedade crescente no ritmo de café com pão, manteiga não.
As viagens eram demoradas – para os adultos – mas consumidas num tempo isento dessa estafa existencial – para a meninice - que nos devorava, ainda os adultos, a cada minuto de espera nas paradas ou no leito da ferrovia, num ajuste de contas entre o comboio que vai e o comboio que vem. A alegria da criançada curiosa. Que tédio os ônibus...
Nossa crônica impaciência contemporânea nos resigna à orfandade dos prazeres do percurso, da navegação pela paisagem que nos pertence em sucessivos e longos instantes para nos abandonar para sempre tão logo lhe damos as costas. Não cabia essa perversa avidez de chegadas, passagens e partidas instantâneas. Inimaginável então. Pois é... acabamos assim: sem retorno, salvos apenas pelo milagre da memória. Alguns. Não precisávamos ir tão longe. Os trens bem poderiam passar logo ali, em velocidade de bem-te-vis. Os balas que fiquem para os modernos escravos afoitos.
As inúmeras estações – repito: degradadas a ruínas – que encontramos ao acaso, na surpresa das curvas, pelas cidadezinhas, perfuram-nos tão fundo que qualquer expectativa prazerosa de retorno ao quintal passado dissolve-se num veneno de melancolia indesejada e inescapável. Bem diversa daquela melancolia aveludada que a nostalgia bem posta vai gradativamente nos proporcionando. É também do viver.
Todas elas tomadas pela imundície e proverbial miséria brasileira. Como bocas devoradas por cáries homicidas. Fotografias restantes no tapete, aquelas destinadas ao socorro do lixo. Vergonhas e fracassos.
Tomados por amargura inamovível, desembarcamos de bolsos vazios, empalidecidos pela asneira própria das almas roubadas, nas plataformas rodoviárias das cidades desfiguradas de infâncias remotas, pobres de substância e entupidos de adjetivos de vária espécie. Não há mais jeito, o mal, ou, o tempo, já não pode ser desfeito. Todos a bordo.
Dezembro de 2008
sábado, 27 de dezembro de 2008
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