terça-feira, 20 de janeiro de 2009


AS FALAS TURVAS

1

Ali, na mesa ampla da cozinha, depois de uma longa jornada sobre legumes, verduras, frutos, folhas, pimentas e rizomas, tudo diligentemente descascado e cortado para o cozido do almoço farto; ela, numa comunhão difícil de raiva e resignação, dizia pra si e para quem, mais perto ainda, pudesse ouvir:
- Oh, meu Deus, matai-me enquanto ainda sou anjo!

Viturina, que havia participado de tudo, prontamente corrigia num arremedo de cochicho:
- Não é assim não! É: “Oh, meu Deus, matai-me enquanto ainda sou virgem!” – rindo com fisionomia deliciosamente marota.

Nós, que assistíamos a tudo curiosas, com as narinas impregnadas das emanações do panelão no fogo, ficávamos assim: meio sem entender nada, meio querendo saber por quê, sem coragem de perguntar.


2

Elas estavam recostadas no gramado do parque público, acompanhadas de uma garota de seus dez anos. As três eram muito magras, miúdas, e portavam, cada uma delas, um saco plástico de supermercado, sujo e amarfanhado. Colhiam frutinhas amarelas que haviam caído de algumas poucas árvores sob as quais se recompunham do sol devastador.

A impressão que tinha era que caminhavam há horas e que mais ainda caminhariam. Ao passar por ali, em minha jornada vadia, vi que se levantaram e iriam prosseguir. O acaso nos pôs quase lado a lado, de forma que conseguia escutar o que falavam entre si. A menina limitava-se a ouvir e seguir um pouco mais à frente, como eu.

Conversavam, em fala veloz, sobre frutas e preferências. Uma delas tinha uma peculiaridade bastante saliente: pontuava, a cada duas palavras, com um sonoro “Caralho!”. Foram tantos naqueles trezentos metros, que acabaram por nos separar já nas margens da autopista, que a menina virou-se para trás e atirou:
- Oh mainha, você não muda seu perfume não?!

A interpelada não hesitou:
- Porra! Cala boca, sua merdinha. Não enche o saco!

Eu subi a passarela, parei no ponto mais alto da estrutura e fiquei entre apreciar o mar e a contemplação daquelas três que seguiam em frente, mais e mais menores, falando sem parar. Menos a menina; na frente, ouvindo o perfume materno.

Cidade da Bahia, janeiro de 2009

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