Ele em sua casa
Vive num cubículo de quatro cômodos entulhado de livros, revistas, recortes de jornais, quadros, ferramentas, móveis, roupas, relógios, máquinas fotográficas, utensílios de cozinha e pequenos objetos úteis e inúteis (de uso potencial) como pedaços de arame, fios, parafusos, pregos, porcas, clipes, elastiquinhos que recolhe nas ruas e andanças por outras localidades – pedras em particular – é um lixeiro contumaz, mais os eletrodomésticos indispensáveis, com exceção da máquina de lavar roupas – que entende como um mecanismo de destruir inexorável e pacientemente roupas.
Coisas quebradas, quebradas ficam, ou são readaptadas, reparadas com cola, arame, numa tentativa de perpetuá-las. Um botijão de gás vazio demora dias para ser reposto – vai improvisando formas alternativas de alimentação – até cansar, enjoar.
As coisas todas acabam, assim, inamovíveis e a limpeza um pesadelo contínua e lentamente aplicado com o fito de que a permanência e convivência com o espaço sejam minimamente suportáveis. Os consertos são também concertos – ritos contínuos pela própria natureza. Um vacilo – uma preguiça demorada ou uma embriaguez continuada – constitui um sério perigo a esse equilíbrio instável. O que não é raro. Como é a convivência entre sua misantropia e carência afetiva, ambas muito acentuadas. Vive só por contingência e opção.
Em conseqüência, o problema estético no arranjo dos elementos fica em segundo plano, mas não-negligenciado. Precisa, como a maioria de nós, de algum panorama minimamente suportável e não necessariamente apreciado, como seu gosto o exigiria. Atende, de início, a necessidade; não teria como escapar disso.
A idéia de ter um estranha faxineira mexendo em suas coisas é descartada, porque ele se perderia, ficaria paralisado e sua irritação seria profunda, imprevisível. Seu mundo desabaria e ele iria junto para o inferno de sua agressividade e autodestruição.
Assim é também seu modo perigoso e peculiar de administrar dívidas acumuladas, eventualmente crescentes, eventualmente estáveis. Conservador ou tímido, outras vezes ousado, arriscado. À estabilidade dos móveis, coisas e utensílios em seus lugares corresponde a instabilidade de sua conduta no curso da vida. O engessamento do tempo-espaço provoca não raro a tentação de um desarranjo purgativo. Rotina e entrega ao inesperado, ao excêntrico, navegam num mar encrespado, sujeito a vendavais.
Tudo acaba resultando numa coerência enervante, obsessiva, mesmo nas ocasiões em que se entrega ao abandono de seu próprio corpo, do trabalho, das relações pessoais, da correspondência eletrônica, de suas criações (desenho e literatura). O abandono é apenas o avesso de uma camiseta mal dobrada atrás da porta, longe de seus olhos.
A casa é o espelho: a calça atirada em qualquer direção, os sapatos, a camisa, o blazer caro, a capa ou sobretudo, documentos, dinheiro, remédios de uso contínuo esquecidos (hipertensão arterial), os cadernos de jornais espalhados, a louça suja empilhada por dias, geladeira desorganizada e livros fora de lugar. Janelas fechadas e isolamento rigoroso, por dias. E a leitura compulsiva, o transtorno de sono, o jejum vêm em seguida, implacáveis. Nunca recebe visitas, parece que não as quer nem espera. Um desmoronamento.
Segue-se um reerguimento progressivo até a mais banal normalidade e organização próprias de pessoas disciplinadas, exemplares. Até o próximo desconcerto, numa circularidade antiga. De difícil ruptura.
Ouve: “Você parece uma pessoa tão calma, tão organizada.” – enquanto ri por dentro, numa melancolia dilacerante. Sua inteligência nunca esteve a serviço de sua alegria, mas esteve sempre sofisticadamente equipada para lançar uma amargura constante entre sua armadura e pele, como um pó-de-mico do qual parece nunca escapar.
Estranhamente, a idéia de suicídio aberto jamais esteve entre suas cogitações, que a vida e seus mistérios sempre exerceram sobre ele um enorme fascínio e curiosidade. Ainda entende o prazer como a glória da vida. Empurram-no para a frente desabusados, entre um cigarro e outro, um uísque e outro, um silêncio e mais outro, uma passada e mais outra, uma beleza entre tantas outras. Luta contra inimigos errados.
Antônio Rebouças Falcão em março de 2008
quinta-feira, 6 de março de 2008
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Um comentário:
Olá Prof. Antônio Falcão,
Meu nome é Ana Cristina Venancio da Silva e estou escrevendo uma dissertação de mestrado sobre a videoteca pedagógica da FDE. Como o senhor foi um dos coordenadores desse importante projeto, gostaria imensamente de entrevistá-lo.
Desculpe-me por usar este espaço, que não se destina a esse tipo de contato, mas acontece que desde há muito tenho buscado um contato com o Sr.
Antecipadamente grata, fico no aguardo de um contato seu pelo e-mail anacvs@usp.br.
Ana Cristina Venancio
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