BARATINHAS NO FOGÃO: O QUE CABE A CADA UM DE NÓS
"Ele tentou fazer algum comentário doce, porém sua língua pendia na boca como uma fruta morta na árvore, e seu coração era uma janela pintada de preto".
Bernard Malamud
A vozinha sensual e juvenil começou:
- Alertamos aos senhores passageiros que é expressamente proibido fumar no interior desta aeronave. Lembramos ainda que os sanitários estão equipados com sensores de fumaça. Nós lhe desejamos uma boa viagem. Obrigado.
Era algo assim, como é de rigor.
O passageiro vizinho soltou o cinto de segurança e abriu as pernas. Bermuda tomara-que-caia, cueca vermelha de nylon, camiseta-espalhafato, chinelão, unhas grandes e sujas. Celular aberto sob as vistas. O rabujento permaneceu atento aos seus movimentos e ruídos orgânicos. "Escumalha!" Pensou com desprezo.
Na poltrona do corredor, um jovem promissor com cara de noivinho. O ranzinza observou com discrição os sapatos-cenoura, bico quadrado, em harmonia com o cinto, calças pretas, camisa de cetim amarelo-espanto, relógio de astronauta e, sobre a mesinha, a revista Quem. Celular aberto sob as vistas. "Escória!" Pensou com indignação.
Na coluna simétrica de poltronas, uma moça com calças jeans, também tomara-que-caia, tatuagem no baixo-ventre, camiseta pink com um roqueiro qualquer estampado em preto e alto contraste, sapatos com salto plataforma de bico-agulha, com apliques de metal, uma espécie de "chão de estrelas", MP4 nas orelhas, celular aberto sob as vistas. "Refugo!" Pensou com a boca tomada por excesso de saliva.
A vizinha, perua assumida, pretinho básico, chapinha no acaju farmacêutico tostado, correntão e pulseiras douradas em profusão, fitinha do Senhor do Bonfim. Ignorou o salto 17 e o bico-radar. Chico Xavier-uma biografia na mesinha. Celular aberto sob as vistas. "Rebotalho!" Pensou impaciente com o sofrimento; procurou esquecer. Em vão. "Se a fuselagem fosse alérgica, espirraria", pensava amiúde.
Na poltrona da janela, um adolescente: camiseta-escândalo, brinquinhos, "piercing", cabelos roxos espetados, escapando pelo boné invertido. Bermuda ampla como lona de circo e tênis-escarcéu, daqueles que espantam cachorros distraídos; videogame na tela do "note" e MP4 nas orelhas. "Ganga!" Pensou etupidificado, resignado com o mundo que se apresentava sem cerimônia; com a viagem que seguia seu curso claustrofóbico e tedioso. Acomodou-se no encosto reclinado; encostou o rosto na parede lateral; nuvens a perder de vista. Adormeceu.
Acordou na aterrissagem. Não tinha bagagem de mão. Enraiveceu-se com a bulha, a muxiba embolada pelo corredor, numa luta feroz para serem os primeiros a sair da aeronave, com o estacionamento forçado, inescapável, a indolência do resgate de bagagens. "Sucata!" Pensou estarrecido. Pernas ainda dormentes, uma vontade de urinar que se anunciava. Boca seca que se esfarelava.
No destino, pagou o motorista com o dinheiro todo trocado, que saiu aos trambolhos do bolso. "Merda!" Entrou no edifício mortificado pelo peso da mala.
Saiu do elevador transpirando pelas unhas, a mala agora no ombro. As mãos trincavam. Porta aberta, estava finalmente salvo, entregue à podridão da geladeira esquecida, às contas não-pagas, formando um tapete pelo chão da sala; ao dinheiro ausente no banco e às plantas mortas. O merecido relaxamento propiciado pelas férias anuais cumpria-se afinal.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
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