FALANDO COM AS PAREDES
POR QUE INSISTE EM ESCREVER TEXTOS QUE NADA ACRESCENTAM, MEROS DESABAFOS?
Nem todos. Admito a ausência de novidades em muitos deles. Alguns são deliberados, mas devagar com essa obsessão quantificadora. Esses textos a que se refere servem à profilaxia: são desafogos de raivas compactadas ao longo de certos períodos de tempo. O muito do mesmo acaba me envenenando. Vivo neste mundo, nas ruas - do bas-fond ao gabinete.
A vida urbana, particularmente em São Paulo (poderia ser em qualquer metrópole brasileira), não permite escapes. Abandonei o automóvel - até gostava de dirigir. A impossibilidade de conviver com a falta de educação generalizada me atirou às estradas, que ficaram perigosas em excesso. Uma pena. A vida de pedestre é também impraticável: calçadas horrorosas, sinalização precária; invisibilidade patrocinada pelas autoridades de trânsito, desrespeito flagrante dos motoristas e, de novo, o brasileiro: não sabe andar nas ruas (e ônibus ou metrô) com o mínimo de cortesia e urbanidade. Assim, corremos o risco de sermos atropelados tanto pelos carros como por outros pedestres. O barulho e a sujeira completam o espetáculo de horror. Advirto: não tolero coisas assim: "a culpa é do sistema, somos todos oprimidos". Isso sempre descamba para o proverbial "deixa, que eu chuto".
Como não sentir raiva?! E nem mencionei o trabalho embrutecedor, o salário aviltante, a insegurança e a força bruta imperiosa. E há muito mais. A barbárie instalada. Sobre o poder público é melhor nem falar. Uma fraude.
RAIVA DESCONTROLADA É DOENÇA NA CERTA. O
QUE FAZER COM ELA?
Muitas vezes, não sei. Ora, o mundo está muito doente. Essa pregação de "vida sadia" é nojenta. A busca individual por aquilo que chamam de "qualidade de vida" ou "auto-estima" é pura auto-cegueira, biombo para não ver que as causas da doença estão firmemente implantadas em toda a geografia da estrutura social. Inamovível. Os criptofascistas estão em toda parte. Não adianta correr no parque; comidinha orgânica, meditação transcendental, yoga, morar em sítio e balelas assim. Não há saída visível e a impotência é real. Admito: não vejo inteligência nisso que chamam "vida alternativa". O problema não é apenas seu, é predominantemente coletivo. Ainda assim, faça a sua parte. É patético!
RESTA, PORTANTO, RESIGNAR-SE COM A INFELICIDADE INARREDÁVEL?
Sim. E apoiar-se em âncoras insensatas: consumo conspícuo, trabalho compulsivo, hipocondria, abuso alimentar, drogas ou largar-se na cama com portas e janelas fechadas; telefones e computadores desligados.
VOCÊ APRECIA A ÚLTIMA ÂNCORA, NÃO?
Sim, mas também sou tabagista incorrígel e frequentemente me encharco em álcool - a raiva descontrolada servindo-se de antigos hábitos perversos. Depressões antecipadamente preparadas. Enrijecer-se em convicções provisórias; martelar regras a esmo; vergonhas e remorsos insistentes. Minha boa saúde inusitada não me convém. Apesar de um câncer sarado (toc-toc-toc), sigo imune a doenças oportunistas. As cardiovasculares me esperam na curva. Sou, dá pra adivinhar, hipertenso.
Há, no meu caso, a leitura compulsiva, a escrita e o desenho. Em passado recente, havia também a fotografia, mas começaram a roubar-me as câmeras e objetivas na rua. Pivetes crackeiros. Sozinho, não saio mais para fotografar. Acabaram com a fotografia preto-e-branco e o laboratório doméstico. Não é mais possível fazê-los. O que designam como fotografia digital não é fotografia, é registro eletrônico aleatório de imagens e manipulação sequente (paintshop). Com vida muito curta. As câmeras têm o mesmo destino dos celulares: lixo. Um embuste, a alegria da mediocridade munida de celulares. Uma banalidade irresponsável, nenhum interesse em produzir beleza. E sabem lá o que é isso? " A beleza é difícil." disse Aubrey Beardsley. Claro que me refiro a essa epidemia de câmeras em telefones móveis. Uma praga.
Para mim, perdeu encanto e desafio, que o registro químico promovia. Sou um velho ranheta, chocoteando preconceitos em vão. Também tenho meus Gran Torinos na garagem.
É urgente que as pessoas consertem máquinas quebradas e parem de ser prisioneiras da obsolescência ardilosamente programada. Estaremos logo afogados em montanhas de lixo eletrônico com o último aparelhinho, em sua mais moderna versão, nas mãos. Bestas! Repare em todos os lugares: as pessoas são incapazes de ficar consigo mesmas, recolhidas em seus pensamentos; já alimentam a estupidez na infância. Têm de manipular maquininhas o tempo todo. Apreciam ser monitoradas; já precisavam de despertadores. O prá lá de sabido.
ENTÃO, É COMO SE OS HOMENS NÃO MAIS SE PERTENCESSEM?
É. Alarmante! Nem disso se dão conta. Essas velhas e tão matraqueadas palavras nunca foram tão atuais, muito mais agravadas: alienação e coisificação. Quando a política é pântano muito perigoso; feita para o afogamento.
CONVIVER COM VOCÊ NÃO DEVE SER FÁCIL. VOCÊ É MUITO CHATO.
Certamente. De perto, como todos. Não é mesmo fácil viver comigo, por isso vivo só. Casei algumas vezes, mas, nessa altura, chega. Esgotei minhas cotas. Quero ter e manter bons amigos e amigas até o ponto possível de nos suportarmos, sem nos ferirmos muito. A vida solitária é um alternar de prazer e dor. E quando a vida não é isso? Desculpe o truísmo.
VOCÊ AINDA TRABALHA. NÃO LHE FAZ BEM?
Não. Trabalho tornou-se escravidão. Só na arte não é. Acredito apenas na atividade criativa e, em alguns casos, na livre produção intelectual. "Livre", "produção"? A luz vermelha de advertência já acendeu.
SUA VIDA PROFISSIONAL SE DEU TODA NA ÁREA DA EDUCAÇÃO. COMO ARTISTA, SEMPRE AMADOR. POR QUÊ?
A Educação foi ilusão juvenil. Acreditava em seu poder transformador. Precisei de quinze anos de atividade para "dar com os burros n'água." Depois, foi fazer (quando deu) um miserável dinheiro para comer, beber, fumar, vestir-me, locomover-me e morar. A Educação não tem mais horizonte viável. O mal que está feito não pode ser desfeito. Penso na velha educação universal. Penso num certo sentido de disciplina, concentração, curiosidade permanentemente alimentada, alguma obsessão, escola e professores independentes e pesquisa proficiente. Depois de quinze anos, vinte de ceticismo, pessimismo e, por fim, a desistência aberta. O poder público sifilítico, o mercantilismo e a uniformização à larga tomaram conta de tudo e mataram qualquer esperança. As gerações jovens que estão aí são um lixo; não desmentem, só confirmam. Poucos se salvam. O que será deles?
O trabalho artístico amador, a literatura e o desenho? Sem eles me mataria, imagino. É a única coisa que ainda me segura. O amadorismo é a única garantia de nenhuma ingerência. Para mim, o território livre possível. Já me pagaram mal por isso, em poucas vezes. Acabo dando os trabalhos aos amigos e parentes. Quando gostam, e não têm de gostar sempre. Acontece que o tipo de desenho que faço não é passível de fácil comércio. É para guardar ou pendurar na parede; não é cartum; não é charge; não é caricatura; não é quadrinhos. Minha literatura é, em sua maior parte, feita de poemas. Há eventuais crônicas; eventualíssimos contos e anotações, poemas em prosa curtíssimos. Então...
Sinto muito prazer em realizá-los, mesmo quando implicam desafios e obstáculos em razão de meus próprios limites. Nem por isso deixo de me acovardar na preguiça.
Os objetos não-instrumentalizáveis, inúteis, são lindos. Amo seixos largados nos leitos dos rios, na areia das praias. Polidos pela água, para nada. Sempre coleto alguns aonde vou.
Prazer ainda em andar "chutando tampinhas"; andar à toa de bicicleta; nadar; tomar uma bebida solitariamente, papel e caneta na mão, apreciando as vicissitudes domingueiras das ruas, o silêncio, e ler sempre. Estar vagabundo é dos melhores prazeres "desta e da outra vida". Bem, a outra é a vagabundagem suprema: perder-se para sempre em repouso "eterno". O deixar de ser quem sou com leveza. Um grande descanso de mim. Fabuloso! Julgo religião uma coisa muito estranha.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
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